Nudez Mortal

Série Mortal nº1

Primeiro Capítulo

«    Acordou às escuras. Pelas frinchas dos estores via‑se o primeiro vislumbre da aurora turva, que projectava barras de sombra na cama. Era como acordar numa cela.

    Por momentos deixou‑se ficar, a tremer, prisioneira, enquanto o sonho se desvanecia. Ao fim de dez anos no activo, Eve ainda sonhava.

    Seis horas antes, matara um homem, vira a morte subir‑lhe aos olhos. Não fora a primeira vez que usara força bruta, nem que sonhara. Aprendera a aceitar o acto e as suas consequências.

    Porém, era a criança que a assombrava. A criança que não fora a tempo de salvar. A criança cujos gritos tinham ecoado nos sonhos com os dela.

    Aquele sangue todo, pensou Eve, a limpar o suor do rosto com as mãos. Uma menina tão pequena com tanto sangue. E sabia ser vital pôr aquilo de lado.

    Os procedimentos típicos da divisão traduziam‑se numa manhã passada em Testes. Qualquer agente que descarregasse uma arma e acabasse com a vida de alguém tinha de passar por avaliações emocionais e psiquiátricas antes de voltar ao serviço. Eve achava os testes uma seca razoável.

    E passaria os testes, como já passara antes.

    Quando se levantou, as luzes do tecto baixaram automaticamente, a alumiar o caminho para o banho. Fez uma careta quando viu o seu reflexo. Tinha os olhos inchados da falta de sono, a pele quase tão pálida quanto a dos cadáveres que passava ao médico‑legista.

    Em vez de matutar nisso, entrou no chuveiro, a bocejar.

    — Dá‑me trinta graus, potência máxima — disse, e mexeu‑se para que o jacto a atingisse em cheio na cara.

    Deixou ganhar vapor e ensaboou‑se morosamente enquanto reproduzia os acontecimentos da noite passada. Só tinha de estar nos Testes às nove, e aproveitaria as três horas seguintes para se acalmar e deixar o sonho desvanecer‑se mesmo.

    Detectavam‑se não raro pequenas dúvidas e mágoas, que se podiam traduzir numa segunda volta mais intensa com as máquinas e os técnicos de olhos de mocho que as operavam.

    Eve não fazia tenções de estar fora de serviço mais de vinte e quatro horas.

    Depois de vestir um roupão, entrou na cozinha e programou o Auto‑Chef para fazer café simples e torradas ligeiras. Pela janela ouvia‑se o ruído forte do trânsito aéreo que levava as gentes aos seus escritórios, e outras a suas casas. Escolhera o apartamento anos antes por estar no meio de trânsito terrestre e aéreo, e gostava do barulho e das multidões. Mais um bocejo, e olhou pela janela, acompanhou a viagem ruidosa de um aerobus envelhecido que levava trabalhadores com a pouca sorte de não trabalharem na cidade nem em ligações domésticas.

    Abriu o New York Times no monitor e leu as gordas, enquanto a falsa cafeína lhe dava energia. O AutoChef voltara a queimar as torradas, mas ela comeu‑as na mesma, com a vaga ideia de tratar de o substituir.

    Estava de sobrolho franzido a ler um artigo sobre a retirada maciça de dróides cocker spaniels quando tocou a teleligação. Eve passou a modo de comunicação e viu o comandante entrar no ecrã.

    — Comandante.

    — Tenente. — Fez um aceno de cabeça, reparou no cabelo molhado e nos olhos sonolentos dela. — Incidente na Vinte e Sete, Broadway Ocidental, piso dezoito. Você é o graduado de serviço.

    Eve ergueu uma sobrancelha. — Vou a Testes. Sujeito tratado às vinte e duas e trinta e cinco.

    — Temos prioridade — disse ele, sem inflexão na voz. — Pegue no distintivo e na arma a caminho do incidente. Código Cinco, Tenente.

    — Sim, Comandante. — O rosto dele desapareceu quando ela se afastou do ecrã. Código Cinco queria dizer que reportaria directamente ao comandante, e que não haveria relatórios interdivisões por selar, nem colaboração com a imprensa.

    Em suma, estava por sua conta.

 

    A Broadway era barulhenta e apinhada, uma festa onde os convidados arruaceiros nunca se iam embora. O trânsito de rua, aéreo e de peões era uma miséria, entupia o ar com corpos e veículos. Nos velhos tempos da farda lembrava‑se daquilo como ponto negro de desastres e turistas atropelados, basbaques a ver o espectáculo em vez de saírem do caminho.

    Mesmo àquela hora havia vapor a sair das bancas de comida, que ofereciam tudo, de massa de arroz a cachorros de soja, às multidões ululantes. Teve de se desviar para não bater num comerciante ávido no seu Gilda‑Grill fumegante, e levou com o dedo em riste dele em agradecimento.

    Eve estacionou em segunda fila e, contornando um homem que cheirava pior do que a garrafa que tinha, foi para o passeio. Primeiro analisou o prédio, cinquenta andares de metal reluzente que cortavam o céu a partir de uma peanha de betão. Teve de ouvir duas ofertas antes de chegar à porta.

    Dado que aquela área de cinco quarteirões se chamava afectuosamente Passeio das Prostitutas, tal não a surpreendeu. Mostrou o distintivo ao guarda fardado que estava à entrada.

    — Tenente Dallas.

    — Sou. — Ele passou o selo informático pela porta para afastar os curiosos e abriu caminho para os elevadores. — Piso dezoito — disse quando as portas se fecharam atrás deles.

    — Conte‑me tudo, agente. — Eve ligou o gravador e aguardou.

    — Não fui o primeiro a chegar, Tenente. O que aconteceu lá em cima não sai lá de cima. Está lá um detective à sua espera. Temos Homicídio e Código Cinco no número 1803.

    — Quem participou?

    — Não tenho essa informação.

    O guarda ficou onde estava quando o elevador se abriu. Eve entrou e ficou sozinha no corredor estreito. Havia câmaras de segurança que se viraram para ela, e os pés dela quase não faziam barulho na alcatifa gasta ao aproximar‑se do 1803. Sem ligar à placa, anunciou‑se com o distintivo ao óculo da porta até esta se abrir.

    — Dallas.

    — Feeney. — Ela sorriu, contente por ver alguém conhecido. Ryan Feeney era um velho amigo e anterior colega, que trocara a rua por trabalho de secretária e cargo de topo na Divisão de Detecção Electrónica. — Então agora mandam cromos dos computadores.

    — Queriam patentes e das melhores. — Os lábios dele curvaram‑se no rosto largo e enrugado, mas os olhos continuaram sérios. Era um homem pequenino e atarracado, com mãos pequenas e sapudas e cabelo cor de ferrugem. — Estás com ar cansado.

    — Noite difícil.

    — Foi o que ouvi. — Ofereceu‑lhe um fruto seco doce do saquinho que tinha sempre com ele, a estudá‑la, e a avaliar se estaria à altura do que a esperava naquele quarto.

    Era jovem para a patente que tinha, trinta e poucos, tinha olhos grandes e castanhos que nunca tinham tido hipótese de serem ingénuos. O cabelo castanho curto, por conveniência mais do que por estilo, ficava‑lhe bem no rosto triangular, de maçãs altas e covinha no queixo.

    Era alta e seca, com ar escanzelado, mas Feeney sabia que havia músculos debaixo do casaco de cabedal. Mais, havia cabeça e coração.

    — Este vai ser delicado, Dallas.

    — Já percebi. Quem é a vítima?

    — Sharon DeBlass, neta do Senador DeBlass.

    Aquilo não queria dizer nada para ela. — A política não é o meu forte, Feeney.

    — O da Virgínia, extrema‑direita, dinheiro antigo. A neta saiu da linha há uns anos, mudou‑se para Nova Iorque e tornou‑se acompanhante autorizada.

    — Era puta. — Dallas olhou para o apartamento. Estava decorado numa modernidade obsessiva – vidro e cromados, hologramas assinados nas paredes, bar recuado de cor vermelho-vivo. O enorme ecrã de ambiente atrás do bar projectava formas e cores que se misturavam em tons pastel.

    Limpa como uma virgem, pensou Eve, e fria como uma puta. — Não espanta, dada a escolha de propriedade.

    — A política é que torna a coisa delicada. A vítima tinha vinte e quatro anos, branca. E aconteceu na cama.

    Eve ergueu uma única sobrancelha. — Parece poético, já que era lá que tudo acontecia. Como é que foi?

    — Esse é o problema seguinte. Quero que vejas por ti própria.

    Atravessaram a sala e pulverizaram as mãos para selarem a gordura e as impressões digitais. À porta, Eve pulverizou a sola das botas para que não apanhassem fibras, cabelos ou pele.

    Eve já se sentia cautelosa. Em circunstâncias normais haveria mais dois investigadores no local do crime, com gravadores de som e imagem. A equipa forense estaria à espera com a impaciência do costume, para limpar tudo.

    O facto de só terem destacado Feeney e ela significava que não faltaria pisar ovos.

    — Câmaras de segurança no átrio, no elevador e nos corredores — comentou Eve.

    — Já tratei dos discos. — Feeney abriu a porta do quarto e deixou‑a entrar primeiro.

    Não era bonito de se ver. A morte raramente era uma experiência tranquila e religiosa na cabeça de Eve. Era o final horrível, indiferente a santos e pecadores. Mas aquela era chocante, como um cenário deliberadamente montado para ofender.

    A cama era enorme, parecia ter lençóis de cetim genuíno, cor de pêssego maduro. Havia holofotes pequenos e suaves direccionados para o meio da cama, onde estava uma mulher nua, aninhada na cova suave de um colchão de água.

    O colchão mexia‑se com ondulações obscenamente graciosas ao ritmo da música programada que saía do espaldar da cama.

    Ainda era bonita, o rosto perfeito com uma cascata de cabelo ruivo flamejante, olhos cor de esmeralda que olhavam vítreos para o tecto de espelhos, braços e pernas compridos e brancos que faziam lembrar O Lago dos Cisnes com o embalo suave da cama.

    Agora não estavam dispostos artisticamente, mas sim lubricamente abertos, de modo que a morta fazia um X no meio da cama.

    Tinha um buraco na fronte, outro no peito, e outro horrivelmente escancarado entre as coxas abertas. O sangue derramara‑se nos lençóis luzidios, fizera pocinhas, pingara e manchara tudo.

    Também havia borrifos nas paredes lacadas, como se fossem pinturas mortíferas feitas por uma criança maléfica.

    Era raro tanto sangue, e ela vira já o bastante na noite anterior para aguentar a cena com a calma de que gostaria.

    Teve de engolir em seco e obrigar‑se a bloquear a imagem da criancinha.

    —Tens isto registado?

    — Tenho.

    — Então desliga essa coisa. — Respirou fundo quando Feeney encontrou os comandos que desligavam a música. A cama imobilizou‑se. — As feridas — murmurou Eve, aproximando‑se para as examinar. — São limpas de mais para serem de faca. E rasgadas de mais para serem a laser. — Teve um vislumbre – filmes antigos da formação, maldades antigas.

    — Caraças, Feeney, parecem ferimentos de bala.

    Feeney meteu a mão no bolso e sacou de um saco selado. — Quem o fez deixou uma recordação. — Passou o saco a Eve. — Uma antiguidade destas tem de valer oito ou dez mil numa colecção autorizada, e duas vezes mais no mercado negro.

    Fascinada, Eve virou a pistola selada na mão. — É pesada — disse de si para si. — Volumosa.

    — Calibre 38 — disse ele. — A primeira que vejo fora de um museu. É uma Smith & Wesson, Modelo Dez, aço temperado. — Olhou‑a com afecto. — Mesmo clássica, costumava ser a arma da polícia até à última metade do século XX. Deixaram de as fazer em 2022, 2023, aquando da proibição do uso de armas.

    — Tu lá sabes de História. — O que explicava a sua presença ali. — Parece nova. — Cheirou o saco, e apanhou o odor a óleo e a queimado. — Alguém tratou bem dela. Aço disparado na carne — divagou ela, a devolver o saco a Feeney. — Que maneira de morrer, e a primeira vez que vejo isto em dez anos de serviço.

    — A segunda para mim. Há coisa de quinze anos, no Lower East Side, houve uma festa que descambou. Um tipo alvejou cinco pessoas com uma calibre 22 antes de perceber que não era um brinquedo. Uma trapalhada.

    — Brincadeiras — murmurou Eve. — Vamos ver os coleccionadores, quantos haverá com peças destas. Alguém pode ter participado um furto.

    — Pode ser.

    — É mais provável que seja do mercado negro. — Eve olhou para o corpo. — Se ela esteve neste negócio alguns anos, deve ter discos, registos dos clientes, livros de contas. — Franziu o sobrolho. — Com um Código Cinco, terei de ser eu a ir porta a porta. Não é um simples crime sexual — disse, e soltou um suspiro. — Quem o fez montou tudo. A arma antiga, as feridas, que são quase a régua e esquadro, as luzes, a pose. Quem é que participou isto, Feeney?

    — O assassino. — Esperou que os olhos dela voltassem a ele. — Daqui mesmo. Ligou para a esquadra. Vês como a mesa‑de‑cabeceira está virada para a cara dela? Foi o que nos chegou. Só vídeo, sem áudio.

    — O gajo exibe‑se. — Eve respirou fundo. — Esperto, arrogante, presumido. Fez sexo com ela primeiro. Aposto o meu distintivo. Depois levanta‑se e mata‑a. — Levantou o braço, fez pontaria, e baixou‑o a fazer a
contagem. — Um, dois, três.

    — Que frio — murmurou Feeney.

    — O gajo é frio. Esticou os lençóis depois. Vês como estão lisinhos? E arranja‑a, abre‑lhe pernas e braços para ninguém ter dúvidas da vida que ela tinha. Fá‑lo cuidadosamente, quase a tirar medidas, para ela ficar perfeitamente alinhada. No meio da cama, braços e pernas abertos. Não desliga a cama porque faz parte do espectáculo. Deixa a arma porque quer que saibamos imediatamente que não é qualquer um. Tem um grande ego. Não quer perder tempo e deixar que descubram o corpo. Quer agora. Satisfação imediata.

    — Ela tinha autorização para homens e mulheres — salientou Feeney, mas Eve abanou a cabeça.

    — Não foi mulher. Uma mulher não a deixava linda e obscena. Não, não foi mulher. Veremos o que conseguimos descobrir. Já foste ao computador dela?

    — Não. O caso é teu, Dallas. Só tenho autorização para ajudar.

    — Vê se consegues entrar nos ficheiros de clientes. — Eve foi até à cómoda e começou a revistar as gavetas.

    Gostos caros, reflectiu. Havia várias peças de seda genuína, do tipo que não se podia falsificar. O frasco de perfume era exclusivo e cheirava a sexo dispendioso.

    O recheio das gavetas estava meticulosamente arrumado, a roupa interior dobrada, as camisolas dispostas por cores e tecidos. O roupeiro a mesma coisa.

    Era óbvio que a vítima adorava roupa, gostava do melhor e tratava muito bem do que era seu.