Glória Mortal
Série Mortal nº2
Primeiro Capítulo
« Os mortos eram a sua profissão. Vivia com eles, trabalhava com eles, estudava‑os. Sonhava com eles. E porque isso não lhe parecia suficiente, num recanto profundo e secreto do seu coração, sofria por eles.
Uma década como polícia havia‑a endurecido, dando‑lhe um olho clínico, por vezes cínico, em relação à morte e às suas muitas causas. Tornava as cenas, como a que presenciava agora, numa noite chuvosa, numa rua escura cheia de lixo, quase demasiado habituais. Ainda assim, sentia.
O homicídio já não chocava, mas continuava a repelir.
A mulher fora linda outrora. Longas madeixas de cabelo comprido espraiadas como raios, no passeio sujo. Os seus olhos, abertos e ainda com a expressão abismada que a morte costumava gravar, eram de um arroxeado escuro, em contraste com as faces brancas, lívidas, e molhadas da chuva.
Vestira um fato caro, da mesma cor sumptuosa que os olhos. O casaco estava muito bem abotoado, ao contrário da saia puxada para cima, que lhe expunha as coxas elegantes. Jóias brilhavam nos dedos, nas orelhas, na lapela lustrosa do casaco. Uma mala de pele com pega dourada encontrava‑se caída junto aos seus dedos esticados.
A garganta havia sido rasgada de forma vil.
A tenente Eve Dallas acocorou‑se ao lado da morte e estudou‑a com atenção. As imagens e os cheiros eram familiares, mas sempre, sempre, havia algo novo. Tanto a vítima quanto o assassino haviam deixado a sua própria marca, o seu próprio estilo e haviam tornado o homicídio pessoal.
O local já havia sido registado. Os sensores da polícia e o toque de intimidade do biombo haviam sido colocados para manter os curiosos afastados, bem como para preservar o local do crime. O tráfego na rua, como era habitual naquela zona, fora desviado. O tráfego aéreo não era abundante àquela hora da noite e não acarretava muita distracção. A batida da música do clube de sexo do outro lado da estrada vibrava com intensidade no ar, pontuada pelos urros ocasionais dos noctívagos. As luzes coloridas do letreiro giratório pulsavam no ecrã, lançando cores garridas sobre o corpo da vítima.
Eve podia ter mandado fechar o estabelecimento aquela noite, mas seria um incómodo desnecessário. Mesmo em 2058, com a proibição de armas, apesar de as experiências genéticas muitas vezes fazerem aflorar os traços hereditários mais violentos antes que tivessem a possibilidade de se manifestar, ocorrera um crime. E acontecia com tal regularidade que os foliões do outro lado da rua ficariam melindrados com um inconveniente insignificante como a morte.
De pé, um agente olhava para a projecção contínua de vídeo e áudio. Junto ao ecrã, dois peritos forenses enfrentavam a chuva implacável, falando de compras e desporto. Nem se haviam dado ao trabalho de olhar para o corpo, nem a tinham reconhecido.
Seria pior, perguntava‑se Eve, os olhos endurecidos ao ver a chuva lavar o sangue, quando se conhecia a vítima?
Tivera apenas uma relação profissional com a Procuradora do Ministério Público, a advogada Cicely Towers, mas o bastante para ter formado uma forte opinião de uma mulher forte. Uma mulher de sucesso, pensava Eve, uma lutadora, que perseguira a justiça de forma incansável.
Será que essa perseguição a levou ali, àquele bairro miserável?
Com um suspiro, Eve esticou o braço e abriu a mala elegante e cara, para corroborar a sua identificação visual. — Cicely Towers, — disse para o gravador. — Sexo feminino, quarenta e cinco anos, divorciada. Residência vinte e um trinta e dois lado este Oitenta e três, número Sessenta e um B. Sem ocorrência de furto. Vítima ainda apresenta a joalharia. Aproximadamente… — procurou na carteira. — Vinte em notas, cinquenta em vales de crédito, seis cartões de crédito, tudo abandonado no local. Sem indício aparente de luta ou agressão sexual.
Olhou para trás, para a mulher caída no passeio. Que raio andavas aqui a fazer, Towers? Perguntava‑se. Aqui, longe do centro de poder, longe da tua casa cheia de classe?
E vestida para trabalhar, pensava. Eve conhecia bem a indumentária rigorosa de Cicely, já que a admirara bem no tribunal e na Câmara Municipal. Cores fortes — sempre pronta para as máquinas fotográficas —, acessórios a condizer, sempre com um toque feminino.
Eve levantou‑se, esfregando distraída os joelhos molhados das calças de ganga.
— Homicídio, — disse, concisa. — Ponham‑na no saco.
Não era surpresa para Eve que os média chegassem ao local do crime e já tivessem montado o cerco, antes de ela chegar ao edifício espelhado, onde Cicely Towers vivera. Vários enviados e jornalistas ávidos haviam acampado no passeio imaculado. A verdade era que eram três da manhã e a chuva a potes não os demovera. Nos seus olhos, Eve via o lobo de garras afiadas. A história era a presa, as audiências o troféu.
Podia ignorar as câmaras que se agitavam na sua direcção, as perguntas disparadas como dardos aguçados. Já quase se habituara à perda do anonimato. O caso que investigara e encerrara no último Inverno tinha‑a catapultado para a praça pública. O caso, pensava agora ao lançar um olhar gelado a um jornalista que teve o desplante de lhe bloquear o caminho, e o seu relacionamento com Roarke.
O caso fora um homicídio. Morte violenta, embora excitante, que depressa passou a ser do interesse público.
Mas Roarke sempre fora notícia.
— O que é que tem de concreto, tenente? Tem algum suspeito? Há um motivo? Pode confirmar que a procuradora Towers foi decapitada?
Eve desacelerou o passo de corrida por breves instantes e varreu com o olhar a corja de jornalistas ensopados, de olhos selvagens. Estava molhada, cansada e revoltada, mas foi cautelosa. Aprendera que se desse aos média algo de si, sabia que a iam espremer, retorcer e pendurá‑la do avesso.
— O departamento não faz qualquer comentário nesta altura, só podendo adiantar que está em curso a investigação sobre a morte da procuradora Towers.
— É a responsável por este caso?
— Por agora, — disse, assertiva, e desapareceu entre dois agentes que guardavam a entrada do edifício.
O corredor estava cheio de flores: bancos compridos e filas de botões de flores perfumados e coloridos, que a levavam a pensar na Primavera, nalgum lugar exótico — a ilha onde passara três dias estonteantes com Roarke, enquanto recuperava de um ferimento de bala e da exaustão.
Nem teve tempo para sorrir com a recordação, como faria noutras circunstâncias, mostrando o distintivo e atravessando os mosaicos de terracota, até ao primeiro elevador.
Lá dentro também estavam agentes da autoridade. Dois na secretária da recepção atentos à segurança informatizada, outros que observavam a entrada, e outros ainda junto aos tubos dos elevadores. Era mais força policial do que o necessário, mas a PMP Towers era uma deles.
— O apartamento dela está selado? — indagou Eve ao polícia mais perto de si.
— Sim, senhora. Ninguém entrou ou saiu desde que ligou às duas e dez.
— Quero cópias dos discos de segurança. — Entrou no elevador. — Para começar, das últimas vinte e quatro horas. — Desceu o olhar para o nome na farda dele. — Quero detalhes de seis, porta à porta, desde as sete da manhã, Biggs. Sexagésimo primeiro andar, — ordenou ela, e as portas transparentes do elevador fecharam‑se em silêncio.
Saiu para a alcatifa luxuosa do sexagésimo primeiro andar, silencioso como um museu. Os corredores estreitos, como em todos os edifícios de apartamentos erigidos no último meio século. As paredes ostentavam uma cor creme impecável, com espelhos em intervalos rígidos, para dar a ilusão de espaço.
Espaço não era problema nas unidades, pensava Eve. Só havia três em todo o edifício. Descodificou a combinação da porta do 61‑B usando o cartão-chave da Polícia e Segurança, e entrou numa elegância silenciosa.
Cicely Towers tinha‑se saído bem, concluiu Eve. E gostava de viver bem. Assim que Eve tirou o vídeo de bolso do estojo de campo e o prendeu ao casaco, começou a perscrutar toda a área. Reconheceu dois quadros de um artista proeminente do século XXI pendurados na parede de tom rosa suave, sobre uma zona de lazer em forma de U, decorada às riscas rosa e verdes. Foi a associação que fez a Roarke que a levou a identificar os quadros, e a fortuna fácil na simplicidade da decoração e das peças seleccionadas.
Quanto é que uma PMP ganha por ano? Perguntava‑se, enquanto a câmara registava o local.
Tudo arrumado, de forma meticulosa. Mas também, reflectia Eve, do que conhecia de Towers, a mulher sempre fora meticulosa. Com a roupa, o trabalho, a gestão da sua privacidade.
Por isso, o que é que uma mulher elegante, inteligente e meticulosa andava a fazer num bairro manhoso, a meio de uma noite manhosa?
Eve caminhava pela sala. O chão era de madeira branca e brilhava como um espelho, por baixo de tapetes adoráveis, que ecoavam as cores dominantes da sala. Em cima de uma mesa, em molduras de hologramas viu crianças em várias fases de crescimento, da infância aos anos de faculdade. Um rapaz e uma rapariga, ambos bonitos, ambos cintilantes.
Era estranho, pensava Eve. Trabalhara com Towers em inúmeros casos ao longo dos anos. Sabia se a mulher tinha filhos? Abanando a cabeça, avançou até ao pequeno computador embutido numa estação de trabalho estilizada, ao canto da sala. De novo, usou o cartão-chave para o ligar.
— Lista de compromissos de Cicely Towers, dois de Maio. — Eve apertava os lábios ao ler os dados. Uma hora num health club de primeira, antes de um dia cheio no tribunal, seguido de uma reunião às seis com um
advogado de defesa de renome, e ainda um compromisso para jantar. Eve ergueu o sobrolho. Jantar com George Hammett.
Roarke tinha assuntos pendentes com Hammett, lembrava‑se Eve. Encontrara‑o uma ou duas vezes e sabia que era um homem charmoso e matreiro, que ganhava a vida exorbitante que levava no sector dos transportes.
E era o último compromisso do dia de Hammett e Cicely Towers.
— Imprimir, — murmurou e guardou a folha na mala.
A seguir tentou a teleligação, solicitando a listagem de todas as chamadas feitas e recebidas nas últimas quarenta e oito horas. Era provável que tivesse de investigar mais a fundo, mas por agora ordenou um registo das chamadas, guardou o disco e começou uma busca prolongada e minuciosa do apartamento.
Pelas cinco da manhã, os olhos picavam e doía‑lhe a cabeça. A única hora que dormira, que conseguira encaixar entre o sexo e o crime, estava a começar a revelar‑se.
— Segundo informações seguras, — disse, exausta, para o gravador, — a vítima vivia sozinha. Não há indícios da investigação inicial que revelem o contrário. Não há indícios de que a vítima tenha deixado o apartamento de outra forma que não voluntária, e não há registo de algum compromisso que pudesse explicar o motivo de a vítima viajar até ao local do crime. A responsável protegeu os dados do computador dela e da teleligação, para uma investigação mais profunda. O porta‑a‑porta irá começar às sete horas e ter-se-á de confiscar os discos de segurança do edifício. A responsável vai deixar a residência da vítima e seguirá caminho para os escritórios da vítima, na Câmara Municipal. Tenente Dallas, Eve. Cinco e oito da manhã.
Eve desligou o áudio e o vídeo, fechando o estojo de campo e saindo.
Passava das dez quando conseguiu voltar para a Central da Polícia. Numa concessão ao próprio estômago vazio, entrou no refeitório, desapontada mas não surpreendida ao descobrir que a maioria das coisas boas, àquela hora, já havia desaparecido. Contentou‑se com um queque de soja e o que o refeitório gostava de fazer passar por café. De tão mau que era, engoliu tudo antes de se acomodar no seu gabinete.
E bem a tempo, uma vez que a sua teleligação tocou de imediato.
— Tenente.
Reprimiu um suspiro, ao fitar o rosto largo e de olhos severos de Whitney. — Comandante.
— No meu gabinete, já.
Não teve tempo para fechar a boca, antes de o ecrã se desligar.
Que se lixe, pensou. Esfregou as mãos pelo rosto e, depois, pelo cabelo castanho, curto e desalinhado. Lá se ia a hipótese de ver as mensagens, de ligar a Roarke para lhe dizer o que andava a fazer, ou a sesta de dez minutos com que andava a fantasiar há algum tempo.
Levantou‑se de novo, descontraindo a tensão que se alojara nos ombros. Ainda teve tempo para despir o casaco. O cabedal protegera‑lhe a camisa, mas as calças de ganga ainda estavam húmidas. Filosoficamente, ela ignorava o desconforto e reunia os poucos dados que tinha. Se tivesse sorte, podia beber outra chávena de café de polícia no gabinete do comandante.
Eve demorou apenas dez segundos a perceber que o café teria de esperar.
Whitney não estava sentado à secretária, como era seu hábito. Estava de pé, diante da janela na única parede que existia, que lhe dava uma visão pessoal da cidade que servira e protegera durante mais de trinta anos. Tinha as mãos enlaçadas atrás das costas, mas a postura descontraída era contrariada pela brancura dos nós dos dedos.
Eve estudou por instantes os ombros largos, o cabelo grisalho escuro e as costas largas do homem que apenas meses antes recusara o cargo de chefe, para se manter ali, no comando.
— Comandante.
— Já parou de chover.
Ela franziu os olhos, algo confusa, antes de ficarem inexpressivos. — Sim, senhor.
— No final de contas, é uma boa cidade, Dallas. Daqui de cima, é fácil esquecermo‑nos disso, mas até é uma boa cidade. Estou a esforçar‑me por me lembrar disso, agora mesmo.
Ela não disse nada, não tinha nada a dizer. Esperou.
— Quis que fosse a responsável neste caso. Tecnicamente, Deblinsky é que devia ter ido, por isso quero saber se acha que ela pode dar chatices.
— Deblinsky é uma boa polícia.
— Pois é. Você é melhor.
Ao subir as sobrancelhas, ficou grata por ele ainda estar de costas para ela. — Agradeço a confiança depositada em mim, comandante.
— Conquistou‑a. Passei por cima dos procedimentos para que ficasse no controlo, por motivos pessoais. Preciso do melhor, de alguém que embata no muro e lhe passe por cima.
— Quase todos conhecíamos a PMP Towers, comandante. Não há um polícia em Nova Iorque que não passasse esse muro para encontrar quem a matou.
Ele suspirou e a inalação profunda de ar trespassou‑lhe o corpo denso antes de se virar. Ficou mais alguns instantes em silêncio, apenas a estudar a mulher que colocara no comando. Era ilusoriamente magra, mas pelo que sabia, tinha mais resistência do que aparentava, naquele corpo esguio e esculpido.
Agora revelava sinais de fadiga, nas sombras por baixo dos olhos cor de malte, na compleição do rosto ossudo. Não podia deixar que isso o preocupasse, por agora.
— Cicely Towers era amiga pessoal, uma amiga pessoal chegada.
— Estou a ver. — Eve perguntava‑se se seria verdade. — Os meus pêsames, comandante.
— Conhecia‑a há anos. Começámos juntos, um polícia implacável e uma advogada criminal impaciente. Eu e a minha esposa somos padrinhos do filho dela. — Fez uma pausa, parecendo lutar por se controlar. — Já informei os filhos dela. A minha esposa vai ter com eles. Vão ficar connosco até ao funeral.
Pigarreou, pressionando os lábios. — Cicely era uma das minhas maiores amigas, e acima de todo o respeito e admiração profissional, gostava muito dela. A minha esposa ficou devastada; os filhos de Cicely estão destroçados. A única coisa que lhes consegui dizer foi que ia fazer tudo, tudo o que estivesse ao meu alcance para encontrar a pessoa que lhe fez isto, para lhe dar aquilo por que lutou a vida toda: justiça.
Agora, sentava‑se, não com autoridade, mas de cansaço. — Estou a dizer‑lhe, Dallas, para que saiba desde já que não tenho qualquer objectividade neste caso. Nenhuma. E sendo assim, estou a contar consigo.
— Agradeço a sua sinceridade, comandante. — Hesitou apenas por instantes. — Como amigo pessoal da vítima, vou ter de o entrevistar assim que possível. — Observou os olhos dele pestanejar e endurecer. — À sua esposa também, comandante. Se for mais cómodo, posso conduzir as entrevistas em sua casa, em vez de aqui.
— Entendo. — Voltou a respirar fundo. — É por isso que é a responsável, Dallas. Não há muitos polícias com a coragem de ir ao que é mais importante, de imediato. Agradecia que aguardasse até amanhã, talvez até mais um ou dois dias, para falar com a minha mulher, e que a visitasse em casa. Eu combino tudo com ela.
— Sim, senhor.
— O que é que descobriu, até agora?
— Fiz o reconhecimento na residência da vítima e nos escritórios. Tenho ficheiros dos casos que ela tinha pendentes e dos que encerrou nos últimos cinco anos. Tenho de cruzar nomes para ver se alguém que ela mandou para a prisão saiu recentemente, as suas famílias e companhias. Em especial, criminosos violentos. A média de condenação dela é muito elevada.
— Cicely era uma leoa no tribunal, e nunca me apercebi que negligenciasse um pormenor. Até agora.
— Porque é que ela apareceu ali, comandante, a meio da noite? Uma autópsia preliminar revela que a hora do óbito foi à uma e dezasseis. É um bairro complicado, cheio de tumultos, assaltos, espeluncas de prostituição. Há um centro de tráfico de químicos bastante conhecido a alguns quarteirões do local onde a encontraram.
— Não sei. Ela era uma mulher cautelosa, mas também era… arrogante. — Esboçou um sorriso. — De forma admirável. Era capaz de se confrontar com o pior que existe nesta cidade. Mas colocar‑se em perigo
deliberadamente… não me parece.
— Tinha um caso em tribunal, Fluentes, homicídio qualificado. Estrangulou uma amiga. O advogado dele recorreu a morte passional, mas dizia‑se que Towers ia pô‑lo atrás das grades. Estou a confirmar se era verdade.
— Está na rua ou enjaulado?
— Na rua. Primeira agressão violenta, a fiança foi muito baixa. Como se trata de um homicídio, pelo menos tinha de usar uma pulseira domiciliária, mas é a mesma coisa que nada, se ele perceber o mínimo de electrónica. Será que ela se encontrou com ele?
— Claro que não. Teria comprometido o caso encontrar‑se com um réu fora do tribunal. — Ao pensar em Cicely, ao lembrar‑se de Cicely, Whitney abanou a cabeça. — Isso ela não ia arriscar. Mas ele pode ter usado outros meios para a aliciar.
— Como disse, estou a averiguar. Teve um compromisso para jantar ontem à noite com George Hammett. Conhece‑o?
— Socialmente. Viam‑se de vez em quando. Nada de sério, segundo a minha mulher. Ela estava sempre a tentar encontrar o homem perfeito para Cicely.
— Comandante, é melhor perguntar‑lhe já, não oficialmente. Esteve sexualmente envolvido com a vítima?
O músculo da sua face contorceu‑se, mas os seus olhos permaneceram calmos. — Não, não estive. Éramos amigos, e essa amizade tinha muito valor. Na verdade, ela era da família. Você não compreende o conceito de família, Dallas.
— Não. — A voz sempre neutra. — Acho que não.
— Peço desculpa. — Fechando os olhos com força, Whitney esfregava as mãos na face. — Foi um comentário escusado, e injusto. E a sua pergunta foi relevante. — Deixou cair as mãos. — Nunca perdeu ninguém que lhe seja próximo, pois não, Dallas?
— Não, que me lembre.
— Ficamos desfeitos, — murmurou ele.
Ela imaginava que sim. Na década que conhecia Whitney, já o vira furioso, impaciente, até friamente cruel. Mas nunca o vira devastado.
Se era isto que a intimidade, e a perda, faziam a um homem forte,
Eve imaginava que estava melhor assim. Não tinha família a perder, e apenas laivos vagos e feios da infância. A sua vida de agora começara quando tinha oito anos e a encontraram, maltratada e abandonada, no Texas. Não importava o que havia acontecido antes daquele dia. Convencia‑se constantemente que não tinha importância. Tornara‑se naquilo que era hoje, na pessoa que era. Quanto a amizades, tinhas poucas, mas preciosas, que acarinhava, em quem confiava. Quanto a algo mais que amizade, havia Roarke. Ele cercara‑a até ela lhe dar mais. O suficiente para a assustar em momentos complicados, assustada por saber que ele não ia descansar até conseguir tudo.
Se lhe desse tudo, e o perdesse, ficaria feita em pedaços?
Em vez de matutar nisso, Eve anestesiou‑se com café e o que restava de um chocolate que descobrira na secretária. A perspectiva de almoçar era uma fantasia tão alucinada como passar uma semana nos trópicos. Bebia e mastigava, enquanto passava os olhos pelo relatório final da autópsia no monitor.
A hora do óbito mantinha-se como indicado no relatório inicial. A causa, um corte profundo na jugular e consequente perda de sangue e oxigénio. A vítima saboreara uma refeição de frutos do mar e verduras, vinho, café verdadeiro e fruta fresca com natas. Estima‑se que a ingestão tenha ocorrido cinco horas antes do óbito.
A resposta fora rápida. Cicely Towers só estava morta há dez minutos quando um taxista, corajoso ou suficientemente desesperado para trabalhar no bairro, avistou o corpo e comunicou. O primeiro carro-patrulha
chegou três minutos depois.
O seu assassino agira de forma rápida, pensava Eve. Mas também, era fácil desaparecer num bairro daqueles, enfiar‑se num carro, numa porta, num clube. Haveria sangue; a jugular espirrara e esguichara. Mas a chuva de certeza que teria ajudado, lavando‑o das mãos do assassino.
Ela teria de passar o bairro a pente fino, fazer perguntas improváveis de receberem alguma resposta viável. Ainda assim, os subornos actuavam onde o procedimento e as ameaças não.
Estudava a fotografia do processo de Cicely Towers com o colar de sangue, quando a teleligação tocou.
— Dallas. Homicídios.
Um rosto surgiu no ecrã, jovem, luminoso e malicioso. — Tenente, tem novidades?
Eve não praguejou, apesar da vontade latente. A opinião que tinha dos jornalistas não era muito boa, mas C. J. Morse conseguia bater no fundo da escala. — Não quer ouvir o que tenho para lhe dizer, Morse.
O seu rosto redondo abriu‑se num sorriso. — Vá lá, Dallas, o público tem o direito de saber. Lembra‑se?
— Não tenho nada para si.
— Nada? Quer que vá para o ar a dizer que a tenente Eve Dallas, a melhor das melhores de Nova Iorque, saiu de mãos vazias da investigação do homicídio de uma das figuras mais respeitadas, proeminentes e visíveis da cidade? Podia fazer isso, Dallas, — disse ele, com um estalido da língua. — Podia, mas não lhe ia ficar nada bem.
— E acha que me importo com isso. — O sorriso dela era uma farpa fina e aguçada, o dedo sobre o botão para desligar a ligação. — Achou mal.
— Talvez não a si directamente, mas ia reflectir‑se no departamento. — Bateu as pestanas longas e femininas. — No comandante Whitney, por puxar os cordelinhos, e a deixar como responsável neste caso. E também temos as repercussões em Roarke.
O dedo dela contorceu‑se, e enrolou‑se na palma da mão. — O assassínio de Cicely Towers é uma prioridade do departamento, do comandante Whitney e minha.
— Vou citá‑la.
Patifezinho de merda. — E o meu trabalho no departamento não tem nada a ver com Roarke.
— Hei, olhos castanhos, tudo o que a atinja, atinge Roarke agora, ou vice‑versa. E sabe bem que o facto de o seu homem manter negócios com a recém‑falecida, o ex‑marido dela e o actual companheiro faz um embrulho bem bonito.
As mãos dela enrolaram‑se em punhos de frustração. — Roarke tem muitos negócios com muita gente. Não sabia que tinha voltado às colunas de mexericos, C. J.
O comentário arrancou‑lhe o sorriso falacioso da cara. Não havia nada que C. J. odiasse mais do que lembrarem o seu passado das colunas de mexericos e cor‑de‑rosa. Especialmente agora que parasitava sem escrúpulos a agenda policial. — Tenho contactos, Dallas.
— Pois, também tem uma borbulha no meio da testa. Se fosse a si, tratava disso. — Com aquele comentário barato, mas prazenteiro, Eve desligou a ligação.
Levantando‑se, caminhou pelo pequeno quadrado do seu gabinete, enfiando as mãos nos bolsos, puxando‑as para fora outra vez. Raios partam, porque é que o nome de Roarke tinha de aparecer ligado a um caso daqueles? Estaria assim tão envolvido nos negócios de Towers e dos seus associados?
Eve voltou a deixar‑se cair na cadeira e franziu o sobrolho para os relatórios sobre a mesa. Teria de descobrir, e depressa.
Pelo menos desta vez, naquele homicídio, sabia que ele tinha um álibi. Na altura em que abriam a garganta de Cicely Towers, Roarke estava na cama com a agente responsável pela investigação. »