Sangue Oculto

Saga do Sangue Fresco nº4

Primeiro Capítulo

 

«    Encontrei a mensagem colada com adesivo à minha porta quando cheguei a casa do trabalho. Tivera o turno do almoço ao fim da tarde no Merlotte’s, mas, porque estávamos no fim de Dezembro, anoitecia cedo. Isso significava que Bill, o meu ex‑namorado (falo de Bill Compton ou do Vampiro Bill, como é conhecido pela maioria dos clientes habituais do Merlotte’s) teria deixado a mensagem na hora anterior à minha chegada. Não pode erguer‑se até ao anoitecer.

    Não via Bill há mais de uma semana e a nossa separação não fora feliz. Mas tocar o envelope com o meu nome escrito fez‑me sentir miserável. Quase se poderia pensar (apesar dos meus vinte e seis anos) que nunca antes tivera e perdera um namorado.

    E quem assim pensasse estaria certo.

    Os tipos normais não querem envolver‑se com alguém tão estranho como eu. As pessoas dizem‑me que tenho a cabeça avariada desde o meu primeiro dia de aulas.

    E têm razão.

    Isso não significa que não seja ocasionalmente apalpada no bar. Os homens embebedam‑se. Eu tenho bom aspecto. Esquecem as suas apreensões provocadas pela minha reputação de estranheza e pelo meu sorriso constante.

    Mas apenas Bill se aproximou de mim de forma íntima. Separar‑me dele magoou‑me muito.

    Esperei até me sentar à velha e marcada mesa da cozinha para abrir o envelope. Ainda tinha o casaco vestido, mas livrara‑me das luvas.

    «Queridíssima Sookie, queria falar contigo quando tiveres recuperado, de alguma forma, dos acontecimentos infelizes do início deste mês.»

    «Acontecimentos infelizes» uma ova. As nódoas negras tinham desaparecido finalmente, mas o joelho ainda me doía quando fazia frio e supunha que assim seria para sempre. Sofrera todos os ferimentos no esforço de resgatar o meu namorado infiel capturado por um grupo de vampiros que incluía a sua antiga paixão, Lorena. Continuava sem perceber porque é que Bill ficara tão enlevado por Lorena a ponto de responder à sua convocatória para se deslocar ao Mississípi.

    «É provável que tenhas muitas perguntas sobre o que aconteceu.»

    E ele que não duvidasse.

    «Se aceitares falar comigo cara a cara, vem à porta da frente e deixa‑me entrar.»

    Bolas. Não esperava aquilo. Ponderei por um minuto. Decidindo que, mesmo que já não confiasse em Bill, não acreditava que me magoasse fisicamente, atravessei a casa até à porta da frente. Abri‑a e disse:

    — Está bem. Podes entrar.

    Emergiu da floresta que rodeava a clareira em que se situava a minha velha casa. Vê‑lo provocou‑me dores. Bill tinha ombros largos e era magro, como consequência de uma vida passada a trabalhar a propriedade junto à minha. Os anos como soldado confederado endureceram‑no antes da sua morte em 1867. O nariz parecia saído de um vaso grego. O cabelo era castanho‑escuro e curto. Os olhos eram igualmente escuros. Não mudara nada desde que nos separáramos. E
nunca mudaria.

    Hesitou antes de cruzar o limiar da porta, mas dera‑lhe autorização e dei um passo ao lado, permitindo‑lhe entrar na sala repleta de mobiliário velho, confortável e impecavelmente conservado.

    — Obrigado — disse, com a sua voz fria e suave, uma voz que ainda me provocava uma pontada de pura luxúria. Muitas coisas tinham corrido mal entre nós, mas não começaram na cama. — Quis falar contigo antes de partir.

    — Onde vais? — Tentei parecer tão calma como ele.

    — Ao Peru. Por ordem da rainha.

    — Continuas a trabalhar na tua… hmm… base de dados? — Não sabia quase nada sobre computadores, mas Bill estudara afincadamente para adquirir competências informáticas.

    — Sim. Preciso de fazer um pouco mais de pesquisa. Um vampiro muito velho de Lima possui grandes conhecimentos sobre a nossa raça no seu continente e marquei um encontro com ele para trocarmos impressões. Também farei um pouco de turismo enquanto lá estiver.

    Lutei contra o impulso de oferecer a Bill uma garrafa de sangue sintético, que teria sido a coisa hospitaleira a fazer.

    — Senta‑te — disse, secamente, indicando o sofá com um aceno de cabeça. Sentei‑me no extremo da poltrona colocada junto ao sofá de forma diagonal. Depois, instalou‑se o silêncio. Um silêncio que me deixou ainda mais consciente de como estava infeliz.

    — Como está o Bubba? — perguntei, por fim.

    — Está em Nova Orleães — respondeu Bill. — A rainha gosta de o manter por perto, ocasionalmente. E foi tão visível aqui durante o último mês que pareceu boa ideia levá‑lo para outro sítio. Regressará em breve.

    Se vissem Bubba, reconhecê‑lo‑iam. Todos conhecem a sua cara. Mas não foi «transformado» com muito sucesso. Talvez o funcionário da morgue, que, por acaso, era vampiro, devesse ter ignorado a minúscula
centelha de vida. Por ser um grande fã, não conseguiu resistir à tentação e, agora, toda a comunidade vampírica sulista se alternava a cuidar de Bubba e tentava escondê‑lo de vista.

    Outro silêncio. Planeara despir a farda e descalçar os sapatos, vestindo um roupão macio e vendo televisão com uma piza Freschetta a meu lado. Era um plano humilde, mas era meu. Em vez disso, sofria.

    — Se tens alguma coisa a dizer, é melhor fazê-lo — disse‑lhe.

    Acenou com a cabeça, quase como se o fizesse para si mesmo.

    — Preciso de explicar — disse. As suas mãos pálidas pousaram‑se no colo. — A Lorena e eu…

    Estremeci involuntariamente. Não queria voltar a ouvir aquele nome. Trocara‑me por Lorena.

    — Preciso de te dizer — continuou, quase furioso. Vira‑me estremecer. — Dá‑me esta oportunidade. — Após um segundo, acenei‑lhe com a mão para que continuasse.

    — Fui a Jackson quando me chamou porque não consegui resistir — disse.

    Ergui as sobrancelhas. Já ouvira aquilo antes. Significava: «Não tenho qualquer controlo.» Ou: «Pareceu valer a pena na altura e não pensava acima da cintura.»

    — Fomos amantes há muito tempo. Como o Eric diz que te contou, as ligações entre vampiros não costumam ser longas, apesar de serem muito intensas enquanto duram. No entanto, o Eric não te contou que a Lorena foi a vampira que me transformou.

    — Em servidor do Lado Negro? — perguntei, mordendo o lábio logo a seguir. Não era assunto para gracejos.

    — Sim — concordou Bill, mantendo‑se sério. — E ficámos juntos depois disso, como amantes, o que nem sempre acontece.

    — Mas separaram‑se…

    — Sim. Há cerca de oitenta anos, chegámos a um ponto em que já não conseguíamos tolerar‑nos durante mais tempo. Não via a Lorena desde então, apesar de ouvir relatar o que fazia, claro.

    — Claro — repeti, sem expressão.

    — Mas tive de obedecer à sua convocatória. É absolutamente imperativo. Quando quem nos transformou chama, temos de responder. — Havia urgência na sua voz.

    Acenei afirmativamente, tentando parecer compreensiva. Suponho que não me saí muito bem.

    — Ordenou‑me que te deixasse — disse. Os seus olhos escuros fixavam‑se nos meus. — Disse que te mataria se não o fizesse.

    Perdia a paciência. Mordi o interior da boca com muita força para me forçar a concentrar.

    — Portanto, sem explicação e sem discutir o assunto comigo, decidiste o que era melhor para ti e para mim.

    — Precisei de o fazer — disse. — Precisei de fazer o que ordenou. E sabia que era capaz de te magoar.

    — Acertaste em cheio. — Lorena esforçara‑se ao máximo para me magoar até à morte. Mas eu matei‑a primeiro. Está bem, foi por sorte. Mas funcionou.

    — E agora já não me amas — disse Bill, com um muito ligeiro tom interrogativo na voz.

    Não tinha uma resposta clara.

    — Não sei — disse‑lhe. — Não pensei que pudesses querer voltar para mim. Afinal, matei‑te a mãe. — Havia um tom interrogativo igualmente ligeiro na minha voz, mas o que mais se ouvia era a amargura.

    — Então, precisamos de mais tempo afastados. Quando regressar, se consentires, voltaremos a falar. Um beijo de despedida?

    Envergonha‑me admitir que adoraria voltar a beijar Bill. Mas era uma ideia tão má que até o simples desejo parecia errado. Erguemo‑nos e encostei‑lhe brevemente os lábios à face. A sua pele pálida reluzia com o brilho discreto que distinguia os vampiros dos humanos. Surpreendera‑me descobrir que nem todos os viam como eu.

    — Tens estado com o lobisomem? — perguntou, quase imediatamente após ter saído. Soava como se as palavras lhe tivessem sido arrancadas pela raiz.

    — Qual lobisomem? — perguntei, resistindo à tentação de pestanejar. Não merecia uma resposta e sabia‑o bem. — Quanto tempo ficarás fora? — perguntei, de forma abrupta, fazendo‑o olhar‑me com dúvida.

    — Não é seguro. Talvez duas semanas — respondeu.

    — Poderemos falar quando voltares — disse, voltando a face. — Deixa‑me devolver‑te a tua chave. — Retirei o molho de chaves da bolsa.

    — Não, por favor. Fica com ela — disse. — Poderás precisar dela durante a minha ausência. Entra na casa à vontade. Pedi para me guardarem a correspondência no posto dos correios até os contactar e creio
que as outras pontas soltas estão tratadas.

    Era eu a última ponta solta. Contive a raiva que me acorria com demasiada frequência naqueles dias.

    — Espero que faças boa viagem — disse, friamente, fechando a porta atrás dele. Dirigi‑me ao quarto. Tinha um roupão para vestir e televisão para ver. Bolas, havia de cumprir o meu plano.

    Mas, enquanto colocava a piza no forno, precisei de secar as bochechas algumas vezes.

***

    A festa de Ano Novo do bar e churrasqueira Merlotte’s acabou, finalmente. Apesar de o proprietário, Sam Merlotte, ter pedido a todos os funcionários para trabalharem nessa noite, Holly, Arlene e eu fôramos as únicas a responder ao pedido. Charlsie Tooten dissera que era demasiado velha para a barafunda que tínhamos de suportar no Ano Novo, Danielle tinha planos há muito para ir a uma festa janota com o seu namorado fixo e uma nova empregada só poderia começar dois dias depois. Suponho que Arlene, Holly e eu precisávamos mais do dinheiro do que de diversão.

    E não tinha recebido convites para fazer qualquer outra coisa. Quando trabalho no Merlotte’s, pelo menos, faço parte do cenário. É quase uma forma de aceitação.

    Varria o papel moído no chão e lembrei‑me de não comentar com Sam como os sacos de papelinhos coloridos tinham sido má ideia. Todos tínhamos sido claros acerca daquele assunto e até Sam, com a sua natureza afável, começava a revelar sinais de cansaço. Não parecia justo deixar que fosse Terry Bellefleur a limpar tudo, apesar de a limpeza do chão ser função sua.

    Sam contava o dinheiro na caixa e guardava‑o num saco para poder passar pela caixa de depósitos nocturnos do banco. Parecia cansado, mas satisfeito.

    Pegou no telemóvel.

    — Kenya? Preparada para me levar ao banco? Está bem. Vemo‑nos na porta das traseiras daqui a uns minutos. — Kenya, uma agente policial, escoltava com frequência Sam à caixa de depósitos nocturnos, sobretudo depois de uma noite de grande receita como aquela.

    Também me agradou o meu dinheiro. Ganhara muito em gorjetas. E cada penny me fazia falta. Ter‑me‑ia agradado a ideia de contar o dinheiro quando chegasse a casa, se tivesse tido a certeza de me restar capacidade cerebral para o fazer. O barulho e o caos da festa, as corridas constantes entre o bar e as mesas, a portinhola dos pedidos, a tremenda confusão que tivemos de limpar, a cacofonia constante de todos aqueles cérebros… Tudo se unira para me deixar esgotada. Perto do fim, sentira‑me demasiado cansada para proteger a mente e muitos pensamentos se tinham infiltrado.

    Não é fácil ser telepata. Na maior parte do tempo, também não é divertido.

    Naquela noite, fora pior do que o habitual. Não apenas porque os clientes do bar, quase todos meus conhecidos de muitos anos, se encontravam numa disposição desinibida, mas porque havia algumas notícias que muita gente estava morta por me contar.

    — Ouvi dizer que o teu namorado foi para a América do Sul — disse Chuck Beecham, um vendedor de automóveis, com a malícia fazendo‑lhe brilhar os olhos. — Vais sentir‑te muito sozinha em casa sem ele.

    — Estás a oferecer‑te para o substituir, Chuck? — perguntou o homem a seu lado no balcão e ambos partilharam uma gargalhada de «somos os dois machos».

    — Não, Terrell — respondeu o vendedor. — Não gosto de sobras de vampiros.

    — Tens maneiras ou vais pela porta fora — disse, sem vacilar. Senti calor nas minhas costas e soube que o meu patrão, Sam Merlotte, os olhava sobre o meu ombro.

    — Há sarilho? — perguntou.

    — Estavam a preparar‑se para pedir desculpa — disse eu, olhando Chuck e Terrell nos olhos. Baixaram o olhar para as cervejas.

    — Desculpa, Sookie — murmurou Chuck. Terrell moveu a cabeça em acordo. Acenei afirmativamente e voltei‑me para receber outro pedido. Mas tinham conseguido magoar‑me.

    E fora esse o seu objectivo.

    Sentia uma dor à volta do coração.

    Tinha a certeza de que a populaça de Bon Temps, Louisiana, não sabia da nossa separação. Bill não tinha o hábito de falar da sua vida pessoal e eu também não. Arlene e Tara sabiam qualquer coisa sobre o assunto, claro, porque é inevitável contar às melhores amigas quando nos separamos de um namorado, mesmo que seja necessário deixar de fora todos os pormenores interessantes. (Como o facto de ter matado a mulher pela qual nos deixou. Algo que não pude evitar. A sério que não.) Quem me dissesse que Bill saíra do país, presumindo que ainda não o sabia, estaria apenas a ser maldoso.

    Até à visita recente de Bill à minha casa, vira‑o pela última vez quando lhe entregara os discos e o computador que me pedira para esconder. Peguei no carro e fi‑lo perto do anoitecer para a máquina não ficar no seu alpendre durante muito tempo. Coloquei todas as suas coisas numa grande caixa impermeável contra a porta. Saiu quando me afastava, mas não parei.

    Uma mulher malévola teria entregado os discos ao patrão de Bill, Eric. Uma mulher mesquinha teria ficado com os discos e com o computador, tendo anulado o convite a Bill (e a Eric) para entrar na casa. Dissera a mim mesma, com orgulho, que não era uma mulher malévola ou mesquinha.

    Além disso, pensando de forma prática, Bill poderia ter contratado um humano para me arrombar a casa e levar as suas coisas. Não achei que o fizesse. Mas precisava muito daquilo ou ficaria em sarilhos com a patroa do seu patrão. Tenho um temperamento difícil, talvez até tenha mau feitio quando me provocam. Mas não sou vingativa.

    Arlene dizia‑me com frequência que sou demasiado boa para o meu próprio bem, mesmo que lhe assegure que não. (Tara nunca o diz. Talvez me conheça melhor?) Percebi, sombriamente, que, algures durante aquela noite caótica, Arlene ouviria alguém contar a partida de Bill. Como não podia deixar de ser, vinte minutos depois da conversa com Chuck e Terrell, atravessou a multidão para me aplicar uma palmadinha nas costas.

    — Seja como for, não precisavas daquele sacana frio — disse. — Que fez ele por ti?

    Acenei debilmente para lhe mostrar como apreciava as suas palavras de conforto. Depois, uma mesa pediu dois whiskey sours, duas cervejas e um gin tónico e precisei de me apressar, sentindo‑me grata por isso. Quando entreguei as bebidas, coloquei‑me a mesma questão. Que fizera Bill por mim?

    Entreguei jarros de cerveja a duas mesas antes de conseguir completar a lista.

    Iniciara‑me no sexo, o que me agradava bastante. Apresentara‑me muitos vampiros, o que não me agradava nada. Salvara‑me a vida, mesmo que, pensando no assunto, não tivesse corrido perigo se não namorasse com ele. Mas também o salvara uma ou duas vezes e essa dívida estava saldada. Chamara‑me «querida» e, quando o fizera, fora sincero.

    — Nada — murmurei, enquanto limpava uma piña colada entornada e passava uma das nossas últimas toalhas lavadas à mulher que a entornara e que tinha grande parte do líquido a ensopar‑lhe a saia. — Não fez nada por mim. — A mulher sorriu e acenou‑me, obviamente pensando que me mostrava solidária com o seu acidente. De qualquer forma, o bar estava demasiado barulhento para ouvir o que fosse e senti‑me afortunada por assim ser.

    Mas ficaria feliz quando Bill regressasse. Afinal, era o meu vizinho mais próximo. O velho cemitério comunitário separava as nossas propriedades, que se situavam junto a uma estrada secundária a sul de Bon Temps. Sem Bill, viveria lá sozinha.

    — Peru. Ouvi dizer — disse Jason, o meu irmão. Tinha o braço à volta da sua rapariga da noite, uma morena baixa e magra de vinte e um anos, oriunda da parvónia. (Pedira‑lhe a identificação.) Olhei‑a com atenção. Jason não sabia, mas era algum tipo de metamorfa. São fáceis de reconhecer. Era uma rapariga atraente, mas transformava‑se em qualquer coisa com penas ou pêlo nas noites de lua cheia. Notei que Sam a olhou com intensidade quando Jason voltou as costas, lembrando‑lhe como ela devia comportar‑se no seu território. Retribuiu o olhar com interesse. Pressenti que não se transformaria num gatinho ou num esquilo.

    Pensei em entrar‑lhe na mente para tentar lê‑la, mas as cabeças dos metamorfos não são fáceis. É como se os seus pensamentos fossem retorcidos e avermelhados, apesar de, ocasionalmente, conseguir captar uma imagem clara das emoções. Com os lobisomens, passa‑se o mesmo.

    Sam transformava‑se num cão collie quando a lua se apresentava cheia e luminosa. Por vezes, ia até minha casa, alimentava‑o com uma malga de restos e deixava‑o dormir no meu alpendre, quando o tempo
estava bom, ou na sala, quando não estava. Não voltei a deixá‑lo entrar no quarto porque acordava nu (uma condição em que tem muito bom aspecto, mas não preciso de ser tentada pelo meu patrão).

    A noite não era de lua cheia e Jason estaria seguro. Decidi não lhe dizer nada sobre a sua acompanhante. Todos têm um segredo ou dois. O segredo dela era apenas um pouco mais colorido.

    Além da acompanhante do meu irmão e de Sam, havia mais duas criaturas sobrenaturais no Merlotte’s naquela noite de Ano Novo. Uma delas era uma mulher magnífica com, pelo menos, um metro e oitenta e cabelo escuro longo e ondulado. Vestida para matar com um vestido laranja e justo de mangas compridas, viera sozinha e ocupava‑se de travar conhecimento com todos os homens no bar. Não soube o que era, mas soube pelo seu padrão cerebral que não era humana. A outra criatura era um vampiro que viera com um grupo de jovens, a maioria com vinte e poucos anos. Não conhecia nenhum deles. Apenas um olhar de soslaio de alguns dos outros convivas assinalou a presença do vampiro. Mostrava a mudança de atitude nos poucos anos passados desde a Grande Revelação.

    Quase três anos antes, na noite da Grande Revelação, os vampiros tinham ido à televisão em todos os países para anunciar a sua existência. Fora uma noite em que muitas das crenças do mundo foram derrubadas e reorganizadas sem remédio.

    Esta admissão fora motivada pelo desenvolvimento de sangue sintético pelos japoneses capaz de satisfazer nutricionalmente os vampiros. Desde a Grande Revelação, os Estados Unidos tinham passado por inúmeras perturbações políticas e sociais no processo atribulado de integrar os novos cidadãos, que tinham a particularidade de estarem mortos. Os vampiros têm uma face pública e uma explicação oficial da sua condição. Dizem sofrer de uma alergia à luz do sol e ao alho que provoca alterações metabólicas, mas eu vi o outro lado do mundo vampírico. Os meus olhos vêem agora muitas coisas que a maioria dos humanos nunca vê. Perguntem‑me se este conhecimento me deixou feliz.

    Não.

    Mas tenho de admitir que o mundo se tornou, para mim, um sítio mais interessante. Passo muito tempo sozinha (já que não sou exactamente normal) e senti‑me grata pelo material de reflexão adicional. O medo e o perigo não provocaram a mesma gratidão. Vi a face privada dos vampiros e descobri a existência de lobisomens, metamorfos e outras criaturas. Os lobisomens e os metamorfos preferem permanecer nas sombras, por enquanto, enquanto observam como a vida pública funciona para os vampiros.

    Como vêem, tinha tudo isto em que pensar enquanto recolhia tabuleiro após tabuleiro de copos e canecas, descarregando e carregando a máquina de lavar para ajudar Tack, o novo cozinheiro. (O seu nome verdadeiro é Alphonse Petacki. Surpreende alguém que prefira «Tack»?) Quando a nossa parte da limpeza estava quase terminada e quando aquela longa noite chegou ao fim, abracei Arlene e desejei‑lhe bom ano. Ela fez o mesmo. O namorado de Holly esperava‑a nas traseiras e Holly acenou‑nos enquanto vestia o casaco e corria para a saída.

    — Que esperanças têm para o novo ano, senhoras? — perguntou Sam. Kenya encostava‑se ao balcão, esperando‑o, com face a calma e desperta. Kenya almoçava ali com frequência, juntamente com o seu parceiro, Kevin, que era tão pálido e magro como ela era escura e redonda. Sam colocava as cadeiras sobre as mesas para que Terry Bellefleur, que chegava muito cedo, pudesse lavar o chão.

    — Saúde e o homem certo — disse Arlene, de forma dramática, fazendo estremecer as mãos sobre o coração e fazendo‑nos rir. Arlene tinha encontrado muitos homens e tinha casado quatro vezes, mas continuava à procura do Sr. Certo. Conseguia ouvir Arlene pensar que poderia ser Tack. Sobressaltou‑me. Nem sequer tinha percebido que o olhara.

    A surpresa notou‑se na minha cara e, com voz insegura, Arlene disse:

    — Achas que devo desistir?

    — Claro que não — respondi, prontamente, censurando‑me por não camuflar melhor a expressão. Estava demasiado cansada. — Será este ano, sem dúvida, Arlene. — Sorri à única agente policial negra de Bon Temps. — Tens de fazer um desejo para o novo ano, Kenya. Ou de tomar uma decisão.

    — Desejo sempre paz entre homens e mulheres — disse Kenya. — Facilitaria o meu trabalho. E a minha decisão é fazer cento e quarenta abdominais.

    — Uau — exclamou Arlene. O seu cabelo tingido de ruivo contrastava violentamente com os caracóis naturais de Sam entre o louro e o ruivo quando lhe deu um abraço rápido. Não era muito mais alto do que Arlene, apesar de ter um metro e setenta e cinco, mais cinco centímetros do que eu. — Vou perder cinco quilos. É essa a minha decisão. — Todos rimos. A decisão de Arlene fora a mesma nos quatro anos anteriores. — E tu, Sam? Desejos e decisões? — perguntou.

    — Tenho tudo aquilo de que preciso — disse. Senti a onda azul da sinceridade irradiar da sua mente. — Decido manter‑me neste rumo. O bar está bem, gosto de viver na minha caravana dupla e as pessoas aqui são tão boas como em qualquer outro sítio.

    Voltei‑me para esconder o sorriso. Fora uma afirmação bastante ambígua. As pessoas de Bon Temps eram, realmente, tão boas como em qualquer outro sítio.

    — E tu, Sookie? — perguntou. Arlene, Kenya e Sam olhavam‑me. Tornei a abraçar Arlene porque gosto de o fazer. Sou dez anos mais nova (talvez seja mais porque, apesar de Arlene dizer que tem trinta e seis, tenho as minhas dúvidas), mas somos amigas desde que começámos a trabalhar juntas no Merlotte’s depois de o Sam comprar o bar, talvez uns cinco anos antes.

    — Vamos — disse Arlene, encorajando‑me. Sam rodeou‑me com o braço. Kenya sorriu, mas saiu para a cozinha para trocar umas palavras com Tack.

    Agindo por impulso, partilhei o meu desejo.

    — Espero apenas não ser espancada — disse, combinando o cansaço e a hora tardia com uma sinceridade pouco adequada. — Não quero ir ao hospital. Não quero ver um médico. — Também não queria
ter de ingerir sangue de vampiro, algo que me curaria num instante, mas que possuía vários efeitos secundários. — A minha decisão é manter‑me longe de sarilhos — disse, com firmeza.

    Arlene pareceu bastante sobressaltada e Sam pareceu… bom… não consegui perceber. Mas, porque abraçara Arlene, abracei‑o também a ele e senti a força e o calor do seu corpo. Qualquer pessoa achará Sam frágil até o ver sem camisa, descarregando caixas de mercadoria. É muito forte e de constituição sólida e tem uma temperatura corporal naturalmente alta. Senti‑o beijar‑me o cabelo e, depois, demos as boas noites uns aos outros e saímos pela porta dos fundos. A carrinha de Sam estava estacionada à frente da caravana, instalada atrás do Merlotte’s, mas num ângulo direito. Entrou no carro‑patrulha de Kenya para ir ao banco. Ela trá‑lo‑ia de volta a casa e Sam desabaria na cama. Estava acordado há muitas horas, tal como todos nós.

    Enquanto Arlene e eu abríamos os carros respectivos, notei que Tack esperava na sua velha carrinha. Era capaz de apostar que seguiria Arlene até casa.

    Com um último «Boa noite!» gritado no ar gelado da noite do Louisiana, separámo‑nos para começar o novo ano.

    Virei para a Hummingbird Road a caminho de casa, que se situa uns cinco quilómetros a sudeste do bar. O alívio por ficar, finalmente, sozinha era intenso e comecei a descontrair mentalmente. Os meus faróis penetraram a muralha de troncos dos pinheiros que sustentavam a indústria madeireira local.

    A noite estava muito escura e fria. Não havia iluminação pública nas estradas secundárias, claro. Não havia quaisquer criaturas a movimentar‑se e não parava de dizer a mim mesma que devia ficar atenta a veados que atravessassem a estrada, ainda que conduzisse em piloto automático. Os meus pensamentos simples estavam preenchidos com o plano de esfregar a cara e vestir a camisa de noite mais quente antes de me enfiar na cama.

    Algo branco foi iluminado pelos faróis do meu velho carro.

    Gritei e fui arrancada à antecipação sonolenta de calor e silêncio.

    Um corredor. Às três da manhã em Janeiro. Corria pela estrada secundária abaixo, aparentemente em fuga para salvar a vida.

    Abrandei, tentando perceber o que deveria fazer. Eu era uma mulher sozinha e desarmada. Se alguma coisa horrível o perseguisse, também poderia apanhar‑me. Por outro lado, não podia permitir o sofrimento de alguém que poderia ajudar. Notei rapidamente que o homem era alto, louro e vestindo apenas calças de ganga azul antes de parar junto a ele. Travei o carro e debrucei‑me para abrir a janela do lado do passageiro.

    — Posso ajudar? — disse. Lançou‑me um olhar de pânico e continuou a correr.

    Mas, nesse momento, percebi quem era. Saltei para fora do carro e corri atrás dele.

    — Eric! — gritei. — Sou eu!

    Voltou‑se, silvando e com os caninos totalmente expostos. Parei de forma tão abrupta que baloucei sem sair do sítio, estendendo as mãos à frente do corpo num gesto de paz. Claro que, se Eric decidisse atacar, estaria morta. Menos uma boa samaritana no mundo. Porque não me reconheceria? Conhecia‑o há vários meses. Era o patrão de Bill na complicada hierarquia vampírica que começava a conhecer. Eric era o xerife da Área Cinco e era um vampiro em ascensão. Era também muito bonito e beijava com o calor de uma casa em chamas, mas, naquele momento, essa não era a sua faceta mais pertinente. O que via eram caninos e mãos fortes transformadas em garras. Eric estava em modo de alarme pleno, mas parecia recear‑me tanto como
eu o receava e ele. Não atacou.

    — Para trás, mulher — advertiu. A sua voz soava rouca e forçada como se tivesse a garganta dorida.

    — Que fazes aqui?

    — Quem és tu?

    — Sabes muito bem quem sou. Que se passa contigo? Porque andas por aqui sem carro? — Eric conduzia um Corvette esguio que combinava perfeitamente com ele.

    — Conheces‑me? Quem sou?

    Não esperava aquilo. Não parecia estar a brincar. Respondi, com cautela:

    — Claro que te conheço, Eric. A não ser que tenhas um gémeo idêntico. Não tens, pois não?

    — Não sei. — Baixou os braços e os caninos pareceram retrair‑se enquanto abandonava a posição de ataque. Senti que havia uma melhoria significativa na atmosfera do nosso encontro.

    — Não sabes se tens um irmão? — Estava completamente perdida.

    — Não. Não sei. Chamo‑me Eric? — Iluminado pelos meus faróis, parecia perfeitamente miserável.

    — Uau. — Não consegui pensar em nada mais útil para dizer. — Usas o nome Eric Northman hoje em dia. Porque estás aqui?

    — Também não sei.

    Começava a perceber uma tendência.

    — A sério? Não te lembras de nada? — Tentei certificar‑me de que, a qualquer momento, não me iria sorrir, explicar tudo e rir‑se, envolvendo‑me nalgum sarilho que me faria ser… espancada.

    — A sério. — Deu um passo para mim e o seu peito branco nu cobriu‑me com pele de galinha por solidariedade. Também percebei (agora que deixara de estar assustada) como parecia desamparado. Era uma expressão que nunca antes vira na sua face confiante e deixou‑me incrivelmente triste.

    — Sabes que és um vampiro, não?

    — Sim. — Pareceu surpreso por ter perguntado. — E tu não és.

    — Não. Sou muito humana e preciso de saber que não me magoarás. Mesmo que já pudesses tê‑lo feito. Mas acredita em mim. Mesmo que não te lembres, somos mais ou menos amigos.

    — Não te magoarei.

    Pensei que era provável que centenas ou milhares de pessoas tivessem ouvido as mesmas palavras antes de Eric lhes rasgar as gargantas. Mas é um facto que os vampiros não precisam de matar depois do seu primeiro ano. Um pouco de sangue aqui, mais um pouco ali. É essa a norma. Parecendo tão perdido, era difícil pensar que podia despedaçar‑me apenas com as mãos.

    Dissera certa vez a Bill que a coisa mais inteligente que os extraterrestres poderiam fazer (quando invadissem a Terra) seria chegarem disfarçados de coelhinhos de orelhas caídas.

    — Anda. Entra no carro antes que congeles — disse‑lhe. Voltava a sentir‑me sugada para uma situação desagradável, mas não sabia que outra coisa poderia fazer.

    — É verdade que te conheço? — perguntou, como se receasse entrar no carro com alguém tão ameaçador como uma mulher vinte e cinco centímetros mais baixa, muitos quilos mais leve e alguns séculos mais nova.

    — Sim — respondi, incapaz de conter uma pontada de impaciência. Não estava muito satisfeita comigo mesma porque restava alguma suspeita de que estaria a ser ludibriada por algum motivo que me escapava.
— Anda daí, Eric. Estou enregelada e tu também. — Por norma, os vampiros pareciam não ser afectados por temperaturas extremas, mas até a pele de Eric começava a parecer arrepiada. Os mortos também podem congelar. Sobreviveriam (sobrevivem a quase tudo), mas suspeito que seria muito doloroso. — Meu Deus, Eric, estás descalço. — Não reparara nisso antes.

    Peguei‑lhe na mão. Deixara‑me aproximar o suficiente para o fazer. Permitiu que o conduzisse até ao carro e o instalasse no banco do passageiro. Disse‑lhe para fechar a janela enquanto me dirigia para o banco do condutor e, após um longo minuto de estudo do mecanismo, obedeceu.

    Estiquei o braço para o banco de trás, procurando um velho cobertor de malha que lá costumo guardar no Inverno (para jogos de futebol americano, etc.) e cobri‑o com ele. Não tremia, claro, porque era um vampiro, mas não conseguia suportar ver toda aquela pele nua com a temperatura tão baixa. Coloquei o aquecimento no máximo (o que, no meu velho carro, não é muito).

    A pele exposta de Eric nunca antes me fizera sentir frio. Sempre que vira assim tanto de Eric, sentira tudo menos frio. Sentia‑me suficientemente zonza para rir alto antes de conseguir censurar os meus pensamentos.

    Sobressaltou‑se e olhou‑me de soslaio.

    — Eras a última pessoa que esperava ver — disse. — Procuravas o Bill? Ele viajou.

    — O Bill?

    — O vampiro que vive aqui? O meu ex‑namorado?

    Abanou a cabeça. Voltava a sentir‑se absolutamente aterrado.

    — Não sabes como vieste parar aqui?

    Tornou a abanar a cabeça.

    Esforçava‑me muito para pensar. Mas não passava disso, um esforço. Estava esgotada. A explosão de adrenalina ao ver uma figura correndo pela estrada escura esgotava‑se com rapidez. Alcancei o desvio para a minha casa e virei à esquerda, percorrendo a floresta negra e silenciosa no meu caminho agradável e nivelado, cuja gravilha nova, por acaso, tinha sido paga por Eric.

    E era por isso que Eric estava sentado no meu carro em vez de correr pela noite fora como um coelho branco gigante. Tivera a clareza de espírito para me dar o que queria. (Claro que também quisera levar‑me para a cama durante meses. Mas arranjara‑me o caminho porque me fazia falta.)

    — Chegámos — disse, parando junto às traseiras da velha casa. Desliguei o motor. Felizmente, lembrara‑me de deixar as luzes exteriores acesas quando saíra para o trabalho nessa tarde. Por isso, não estávamos em escuridão total.

    — É aqui que vives? — Olhava a clareira onde se situava a casa, parecendo recear ir do carro à porta das traseiras.

    — Sim — respondi, exasperada.

    Limitou‑se a lançar‑me um olhar que mostrava o branco dos olhos.

    — Vamos — disse, sem qualquer graça. Saí do carro e subi os degraus até ao alpendre, que não tranco porque não faz sentido trancar um alpendre protegido com rede. Mas tranco a porta para a casa e, após um segundo a debater‑me com a fechadura, consegui abri‑la e a luz que deixo acesa na cozinha iluminou o alpendre. — Podes entrar — disse‑lhe, para conseguir passar o limiar da porta. Seguiu‑me, ainda com o cobertor em redor do corpo.

    À luz da cozinha, Eric metia dó. Os pés nus sangravam, algo em que não notara antes.

    — Oh, Eric — exclamei, com tristeza, retirando uma panela do armário e deixando correr água quente sobre o lava‑louça. Sararia muito depressa, como todos os vampiros, mas não consegui evitar querer lavá‑lo. As calças de ganga estavam imundas junto à bainha. — Despe‑as — disse, sabendo que se molhariam se lhe pusesse os pés de molho enquanto estivesse vestido.

    Sem qualquer malícia ou outra indicação de que lhe agradava o desenvolvimento, despiu as calças. Atirei‑as para o alpendre para as lavar na manhã seguinte, tentando não olhar especada para o meu hóspede, que se cobria agora apenas com roupa interior vistosa, uma tanga escarlate cuja elasticidade era testada com afinco. Outra grande surpresa. Só vira a roupa interior de Eric numa ocasião (uma ocasião a
mais do que deveria) e usava boxers de seda. Os homens mudavam de preferência com aquela facilidade?

    Sem rodeios ou comentários, o vampiro voltou a enrolar o corpo pálido no cobertor. Hmm. Aquilo convenceu‑me de que estava alterado como nenhum outro indício teria conseguido. Eric tinha mais de um metro e noventa de pura magnificência (magnificência de um branco marmóreo) e sabia‑o bem.

    Apontei‑lhe uma das cadeiras de costas direitas que rodeavam a mesa da cozinha. Obediente, puxou uma e sentou‑se. Agachei‑me junto à panela no chão e guiei‑lhe cuidadosamente os seus grandes pés para a água. Gemeu quando o calor lhe tocou os pés. Suponho que até um vampiro conseguiria sentir o contraste. Retirei um trapo limpo de baixo do lava‑loiça e sabonete líquido. Lavei‑lhe os pés. Demorei‑me porque tentava pensar no que fazer a seguir.

    — Andavas sozinha pela noite? — referiu, com alguma incerteza.

    — Regressava do trabalho, como podes ver pelas minhas roupas. — Vestia a farda de Inverno, uma camisola branca de mangas compridas com Merlotte’s Bar bordado sobre o seio esquerdo e enfiada em calças pretas.

    — As mulheres não deviam andar sozinhas tão tarde — disse, em tom reprovador.

    — Bem podes dizê‑lo.

    — Bom… As mulheres são mais vulneráveis a um ataque do que os homens e, por isso, devem ser mais protegidas…

    — Não estava a ser literal. Queria dizer que concordava contigo. Estás a ensinar a missa ao padre. Não me agrada trabalhar até tão tarde.

    — Então porque o fizeste?

    — Preciso do dinheiro — respondi, limpando a mão e retirando um molho de notas do bolso e colocando‑o sobre a mesa por me lembrar dele. — Tenho as despesas desta casa, o meu carro é velho e preciso de pagar os impostos e o seguro. Como qualquer outra pessoa — acrescentei, para que não pensasse que me queixava sem razão. Odiava lamentar‑me da minha pobreza, mas ele pedira‑o.

    — Não tens um homem na tua família?

    Ocasionalmente, as suas idades manifestam‑se.

    — Tenho um irmão. Não me lembro se já conheceste o Jason. — Um corte no pé esquerdo parecia especialmente mau. Coloquei mais água quente na pia para aquecer a que restava. Depois, tentei limpar
toda a terra. Estremeceu enquanto esfreguei delicadamente o trapo sobre os limites da ferida. Os cortes e nódoas negras mais pequenos pareciam desaparecer diante dos meus olhos. O esquentador ligou‑se atrás de mim. O som familiar era tranquilizante.

    — O teu irmão permite que trabalhes?

    Tentei imaginar a cara de Jason quando lhe dissesse que esperava que me sustentasse para o resto da minha vida por ser mulher e por não dever trabalhar fora de casa.

    — Santo Deus, Eric. — Ergui o olhar para ele, com desagrado. — O Jason tem problemas próprios. — Como o egoísmo crónico e não conseguir resistir a um rabo de saias.

    Coloquei a panela de água de lado e sequei‑o com um pano da louça. Passava a ser um vampiro com pés limpos. Ergui‑me com uma dificuldade considerável. Doíam‑me as costas. Doíam‑me os pés.

    — Ouve, acho que devo ligar à Pam. É provável que saiba o que se passa contigo.

    — Pam?

    Era como ter diante de mim uma criança de dois anos particularmente irritante.

    — O teu braço‑direito.

    Preparava‑se para fazer outra pergunta. Percebia‑o. Ergui uma mão.

    — Espera. Deixa‑me ligar‑lhe primeiro para descobrir o que se passa.

    — Mas e se me tiver atraiçoado?

    — Nesse caso, também precisaremos de o saber. Quanto mais cedo, melhor.

    Peguei no velho telefone pendurado na parede da cozinha, junto ao fundo da bancada. Havia um banco alto ao lado. A minha avó sentava‑se sempre no banco durante as suas demoradas conversas telefónicas, com um bloco e um lápis a jeito. Não havia dia em que não sentisse a sua falta. Mas, naquele momento, não restava espaço na minha paleta emocional para o luto ou mesmo para a nostalgia. Procurei na minha pequena agenda o número do Fangtasia, o bar de vampiros em Shreveport que proporcionava a Eric o quinhão principal do seu rendimento e servia de base às suas operações, que sabia serem extensas. Não sabia até que ponto eram extensas nem conhecia a natureza dos seus outros negócios, mas não estava particularmente interessada em descobrir.

    Lera no jornal de Shreveport que também o Fangtasia tinha preparado uma grande festa para aquela noite («Comece o Seu Ano Novo com Uma Dentada») e soube que alguém lá estaria. Enquanto o telefone tocava, abri o frigorífico e retirei uma garrafa de sangue para Eric. Enfiei‑a no microondas e ajustei o temporizador. Vi que me seguia cada movimento com olhos ansiosos.

    — Fangtasia — disse uma voz masculina com sotaque.

    — Chow?

    — Sim. De que forma poderei agradar‑lhe? — Recordara a sua pose telefónica de vampiro sensual a tempo.

    — É a Sookie.

    — Ah — disse, com voz muito mais natural. — Ouve, Sook, feliz Ano Novo. Mas estamos um pouco ocupados aqui.

    — Procuram alguém?

    Seguiu‑se um silêncio longo e carregado.

    — Espera um minuto — disse. A seguir, deixei de ouvir.

    — Pam — disse Pam. Erguera o auscultador de forma tão silenciosa que me sobressaltou ouvir a sua voz.

    — Ainda tens um mestre? — Não sabia o que podia dizer pelo telefone. Queria saber se tinha sido ela a deixar Eric naquele estado ou se ainda lhe era leal.

    — Tenho — respondeu, com firmeza, compreendendo o que queria saber. — Temos… alguns problemas.

    Revolvi aquilo até me certificar de que conseguira ler nas entrelinhas. Pam dizia‑me que ainda era leal a Eric e que o seu grupo de seguidores estava sob algum ataque ou envolvido em alguma crise.

    Disse:

    — Está aqui. — Pam apreciava a brevidade.

    — Está vivo?

    — Sim.

    — Ferido?

    — Mentalmente.

    Uma pausa muito longa.

    — Corres perigo?

    Pam não se importaria muito se Eric decidisse drenar‑me, mas pensaria se lhe daria abrigo.

    — De momento, não me parece — respondi. — Parece ser uma questão de memória.

    — Odeio bruxas. Os humanos estavam certos quando decidiram queimá‑las na fogueira.

    Levando em conta que os mesmos humanos que queimavam bruxas teriam adorado cravar uma estaca no coração dos vampiros, achei aquele comentário vagamente divertido. Mas não muito porque era muito tarde. Esqueci de imediato o que dissera. Bocejei.

    — Iremos amanhã à noite — disse, por fim. — Podes ficar com ele durante o dia? O sol nascerá em menos de quatro horas. Tens um sítio seguro?

    — Sim. Mas venham logo que anoiteça, ouviram? Não quero voltar a envolver‑me nas vossas merdas de vampiros. — Normalmente, não falo de forma tão directa, mas, como disse, estava no fim de uma longa noite.

    — Iremos.

    Desligámos ao mesmo tempo. Eric observava‑me, sem pestanejar os olhos azuis. O cabelo era um emaranhado de ondas louras. Era exactamente da cor do meu e também tenho olhos azuis, mas as semelhanças terminam aí.

    Pensei em escovar‑lhe o cabelo, mas sentia‑me demasiado fatigada.

    — Muito bem. Faremos assim — disse‑lhe. — Ficas aqui o resto da noite e o dia. A Pam vem buscar‑te amanhã à noite e explica‑te o que está a acontecer.

    — Não vais deixar ninguém entrar? — perguntou. Notei que tinha esvaziado a garrafa de sangue e que parecia menos tenso, o que era um alívio.

    — Eric, darei o meu melhor para te manter seguro — disse, com delicadeza. Esfreguei a cara com as mãos. Adormeceria de pé. — Anda — disse, pegando‑lhe na mão. Segurando o cobertor com a mão livre, percorreu o corredor atrás de mim. Um gigante branco como neve com roupa interior minúscula e vermelha.

    A minha velha casa sofreu acréscimos ao longo dos anos, mas nunca foi mais do que uma humilde casa de quinta. Um segundo piso foi acrescentado na viragem do século e há mais dois quartos e um sótão no andar de cima, mas raramente lá vou. Mantenho tudo desligado para poupar na electricidade. Há dois quartos no piso inferior. Ocupei o mais pequeno até à morte da minha avó e o maior, do lado oposto do corredor, pertencia‑lhe. Mudara‑me para o quarto maior depois da sua morte. Mas o buraco que Bill construíra ficava no quarto mais pequeno. Levei Eric até lá, acendendo a luz e certificando‑me de que as persianas estavam fechadas antes de correr as cortinas. Depois, abri a porta do armário, retirei as poucas coisas que continha e puxei a aba de carpete que cobria o soalho, expondo o alçapão. Por baixo, ficava um compartimento exíguo que Bill construíra alguns meses antes para poder ficar lá durante o dia ou usá‑lo como esconderijo se a sua casa deixasse de ser segura. Bill gostava de ter uma toca segura e, certamente, teria algumas que desconhecia. Se fosse vampira (Deus me livre), também as teria.

    Tive de apagar os pensamentos sobre Bill da cabeça enquanto mostrava ao meu hóspede relutante como fechar o alçapão e como a aba de carpete voltava à posição inicial.

    — Quando acordar, volto a pôr as coisas no armário para parecer natural — assegurei, sorrindo de forma encorajadora.

    — Preciso de entrar agora? — perguntou.

    Eric estava disposto a fazer o que lhe dissesse. O mundo estava mesmo virado do avesso.

    — Não — respondi, tentando parecer preocupada. Apenas conseguia pensar na minha cama. — Não precisas. Entra antes de o sol nascer. É impossível esqueceres‑te disso, não é? Quer dizer… Podes
adormecer e acordar ao sol?

    Pensou por um momento e abanou a cabeça.

    — Não — disse. — Sei que isso não pode acontecer. Posso ficar no quarto contigo?

    Ó, Deus. Olhos de cachorrinho. De um vampiro viquingue gigante e velho de séculos. Era demais. Não tinha energia suficiente para gargalhar e limitei‑me a produzir um risinho triste.

    — Anda daí — disse, sentindo a voz tão fraca como as pernas. Apaguei a luz naquele quarto, atravessei o corredor e acendi a luz do meu refúgio em tons de amarelo e branco, limpo e quente, puxando a colcha da cama, o cobertor e o lençol. Enquanto Eric se sentava, desamparado, numa cadeira do outro lado da cama, descalcei os sapatos e as meias, retirei uma camisa de noite de uma gaveta e dirigi‑me à casa de banho. Saí dez minutos depois, com dentes e cara limpos e agasalhada com um roupão de flanela muito velho e muito macio de cor creme e com flores azuis. As fitas eram torcidas e o folho no rabo era infeliz, mas assentava‑me na perfeição. Depois de apagar a luz, lembrei‑me de que ainda tinha o cabelo preso no rabo‑de‑cavalo habitual, puxei o elástico que o prendia e abanei a cabeça para o libertar. Até o meu couro cabeludo pareceu descontrair, fazendo‑me suspirar de deleite.

    Enquanto subia para a cama velha e alta, a grande carraça que apanhara na estrada fez o mesmo. Tinha‑lhe dito que se podia deitar comigo? Decidi, enquanto me aninhava entre lençóis macios e familiares, o cobertor e a colcha que, se Eric tinha intenções que me envolvessem, estava demasiado cansada para me importar.

    — Mulher?

    — Hmm?

    — Como te chamas?

    — Sookie. Sookie Stackhouse.

    — Obrigado, Sookie.

    — De nada, Eric.

    Por parecer tão perdido (o Eric que conhecia presumia sempre que os outros deviam servi‑lo), procurei a sua mão por baixo das cobertas. Quando a encontrei, cobri‑a com a minha. A palma da sua mão voltou‑se para cima para receber a minha e os seus dedos uniram‑se aos meus.

    E, apesar de não achar possível adormecer de mão dada com um vampiro, foi precisamente o que aconteceu. »