Sangue Furtivo
Saga do sangue Fresco nº5
Primeiro capítulo
« Soube que o meu irmão se transformaria numa pantera antes dele. No caminho para a encruzilhada remota onde se situava a povoação de Hotshot, observou o pôr-do-sol em silêncio. Jason vestia roupa velha e trazia um saco do Wal-Mart, contendo algumas coisas de que poderia precisar (escova de dentes, roupa interior limpa). Encolhia-se no interior do seu volumoso casaco de camuflado, olhando em frente. A necessidade de controlar o medo e a excitação deixava-lhe a face tensa.
— Tens o telemóvel no bolso? — perguntei, percebendo logo que as palavras me deixaram os lábios que já tinha feito aquela pergunta. Mas Jason acenou afi rmativamente com a cabeça em vez de manifestar desagrado. Estávamos a meio da tarde, mas, no início de Janeiro, a noite chega cedo.
Naquela noite, teríamos a primeira lua cheia do novo ano.
Quando parei o carro, Jason voltou-se para me olhar e, mesmo com a luz ténue, percebi a mudança nos seus olhos. Tinham deixado de ser azuis como os meus. Estavam amarelados. A sua forma tinha mudado.
— Sinto a cara estranha — disse-me. Mas continuava sem somar dois mais dois.
A minúscula Hotshot estava silenciosa e tranquila na luz decrescente. Um vento frio soprava sobre os campos nus e os pinheiros e carvalhos tremiam com as rajadas de ar gélido. Via-se apenas um homem. Estava de pé à porta de uma das pequenas casas, a que tinha sido pintada recentemente. Mantinha os olhos fechados e a sua face barbuda erguia-se para o céu cada vez mais escuro. Calvin Norris esperou que Jason saísse pela porta do meu velho Nova antes de se aproximar, debruçando-se para a minha janela. Abri-a.
Os seus olhos de um verde dourado eram tão perturbadores como eu recordava e o resto do seu corpo era perfeitamente discreto. Baixo, grisalho, encorpado, assemelhava-se a centenas de outros homens que vira no Merlotte’s Bar. Apenas os olhos o tornavam diferente.
— Cuidarei dele — disse. Atrás, Jason mantinha-se de costas voltadas para mim. O ar em redor do meu irmão adquiria uma qualidade peculiar. Parecia vibrar.
Nada daquilo era culpa de Calvin Norris. Não fora ele a morder o meu irmão, transformando-o para sempre. Calvin, um metamorfo que se transformava em pantera, nascera assim. Era a sua natureza. Forcei-me a dizer:
— Obrigada.
— Levo-o a casa de manhã.
— Para a minha casa, por favor. É lá que tem a carrinha.
— Muito bem. Boa noite. — Voltou a erguer a face para o vento e senti que toda a povoação esperava a minha partida, por trás das suas janelas e portas.
Foi o que fi z.
Jason bateu-me à porta às sete horas da manhã seguinte. Trazia o seu pequeno saco do Wal-Mart, mas não usara nada do que continha. Tinha nódoas negras na cara e as mãos cobertas de arranhões. Não disse
uma palavra. Limitou-se a fitar-me quando lhe perguntei como estava e passou por mim, entrando na sala de estar e seguindo pelo corredor. Fechou a porta da casa de banho com um clique determinante. Um segundo depois, ouvi a água correr e não contive um suspiro fatigado. Apesar de ter trabalhado, chegando a casa cansada por volta das duas da manhã, não dormira grande coisa.
Quando Jason saiu, preparara-lhe bacon com ovos. Sentou-se à velha mesa da cozinha com uma expressão de agrado: um homem fazendo uma coisa familiar e agradável. Mas, após fitar o prato durante
um segundo, levantou-se com um salto e correu de volta à casa de banho, fechando a porta com um pontapé depois de entrar. Ouvi-o vomitar uma e outra vez.
Esperei do outro lado da porta, impotente, sabendo que não queria que entrasse. Após um momento, regressei à cozinha para despejar a comida no lixo, envergonhada pelo desperdício, mas absolutamente
incapaz de me forçar a comer.
Quando Jason regressou, disse apenas:
— Café?
Estava verde e parecia dorido.
— Estás bem? — perguntei, não sabendo se conseguiria responder ou não. Enchi-lhe a caneca com café.
— Sim — respondeu, após um momento, como se tivesse sido necessário pensar no assunto. — Foi a experiência mais incrível da minha vida.
Por um segundo, achei que se referisse ao facto de vomitar na minha casa de banho, mas essa experiência não teria nada de novo para Jason. Bebera muito na adolescência até perceber que não havia nada de encantador ou atraente em ficar debruçado sobre uma sanita, expelindo o conteúdo do estômago.
— A transformação — arrisquei.
Acenou afirmativamente, aninhando a chávena de café nas mãos. Manteve a face sobre o vapor que se erguia do líquido quente, intenso e negro. Olhou-me. Os seus olhos tinham retomado o seu azul costumeiro.
— A explosão de adrenalina é incrível — disse. — Porque fui mordido e não nasci assim, não consigo tornar-me uma pantera genuína como os outros.
Conseguia ouvir-lhe a inveja na voz.
— Mas até aquilo em que me transformo é espantoso. Sentes a magia dentro de ti e sentes que os ossos se movem e se adaptam. E a tua visão muda. A seguir, ficas mais perto do chão e caminhas de uma forma completamente diferente. E há a corrida. Consegues correr como o raio. Consegues perseguir... — Calou-se.
De qualquer forma, preferia não saber aquela parte.
— Então não é assim tão mau? — perguntei, mantendo as mãos unidas. Jason era a família que me restava, com excepção de uma prima que se perdera anos antes no submundo da droga.
— Não é assim tão mau — concordou Jason, forçando um sorriso. — É óptimo enquanto és o animal. Tudo se torna tão simples. É quando voltas a ser humano que começas a preocupar-te com as coisas.
Não se sentia suicida. Não se sentia revoltado. Não percebi que sustinha o fôlego até o libertar. Jason conseguiria viver com o que o destino lhe atribuíra. Ficaria bem.
O alívio foi incrível. Como se tivesse removido algo entalado de forma dolorosa entre os dentes ou como se tivesse sacudido uma pedra aguçada para fora do sapato. Durante dias, semanas, sentira-me preocupada e, agora, essa ansiedade tinha partido. Não significava que a vida de Jason como metamorfo seria desprovida de preocupações, pelo menos da minha parte. Se casasse com uma humana comum, os seus filhos seriam normais. Mas, se casasse com alguém da comunidade metamorfa de Hotshot, teria sobrinhas e sobrinhos que se transformariam em animais uma vez por mês. Pelo menos, fá-lo-iam depois da puberdade. Isso permitir-lhes-ia, e também à sua tia Sookie, algum tempo de preparação.
Felizmente para Jason, restavam-lhe bastantes dias de férias e não teria de regressar ao trabalho no departamento de estradas do condado. Mas eu teria de trabalhar naquela noite. Assim que Jason partiu na sua carrinha vistosa, voltei a enfiar-me na cama, sem sequer despir as calças de ganga, e levei cinco minutos a adormecer profundamente. O alívio funcionava como uma espécie de sedativo.
Quando acordei, eram quase três horas e precisava de me preparar para o meu turno no Merlotte’s. Lá fora, o sol brilhava com intensidade e a temperatura era de onze graus, de acordo com o meu termómetro capaz de medir a temperatura dentro e fora de casa. Não era invulgar para o Norte do Louisiana em Janeiro. A temperatura cairia quando o sol se pusesse e Jason transformar-se-ia. Mas teria pêlo. Não uma pelagem completa, porque se transformava numa criatura que era metade homem e metade felino. E estaria acompanhado por outras panteras. Iriam caçar. A floresta em redor de Hotshot, que se situava num canto remoto do Condado de Renard, voltaria a ser um local perigoso naquela noite.
Enquanto comia, aproveitei para tomar banho e dobrar a roupa lavada e pensei numa dúzia de coisas que gostaria de saber. Pensei se os metamorfos matariam um humano que encontrassem na floresta. Pensei na consciência humana que manteriam na sua forma animal. Se acasalassem transformados em panteras, teriam um gatinho ou um bebé? O que acontecia a uma metamorfa grávida na lua cheia? Pensei se Jason saberia as respostas a todas aquelas perguntas e se Calvin lhe teria dado algum tipo de instrução.
Mas congratulei-me por não ter questionado Jason naquela manhã, quando tudo lhe era ainda novo. Teria muitas oportunidades para lhe fazer perguntas mais tarde.
Pela primeira vez desde o dia de Ano Novo, pensava no futuro. O símbolo da lua cheia no meu calendário deixara de parecer um ponto final assinalando o fim de alguma coisa, para se tornar numa forma alternativa de contar o tempo. Vestindo a minha farda de empregada do bar (calças pretas, camisola branca de gola caída e Reeboks pretos), senti-me quase entontecida pela alegria. Para variar, deixei o cabelo solto em vez de o prender num rabo-de-cavalo. Coloquei uns brincos pequenos de vermelho intenso e escolhi um batom a condizer. Um pouco de maquilhagem nos olhos e rouge e estava pronta.
Estacionara nas traseiras da casa na noite anterior e certifiquei-me cuidadosamente de que não havia vampiros escondidos no alpendre traseiro antes de fechar e trancar a porta dos fundos. Fora surpreendida
antes e a sensação não me agradara. Apesar de a escuridão não ser ainda completa, poderia haver alguns madrugadores por perto. Era provável que a última coisa que os japoneses tivessem esperado quando
desenvolveram sangue sintético fosse que a sua criação trouxesse os vampiros do mundo das lendas para a luz dos factos. Tinham tentado apenas ganhar algum dinheiro com a venda do substituto do sangue a empresas de transporte de doentes e a urgências hospitalares. Em vez disso, tinham mudado para sempre a forma como víamos o mundo.
Por falar em vampiros (ainda que falasse apenas comigo mesma), pensei se Bill Compton estaria em casa. O vampiro Bill fora o meu primeiro amor e vivia do lado oposto do cemitério. As nossas casas situavam-se junto a uma estrada nos arredores de Bon Temps, a sul do bar onde trabalhava. Ultimamente, Bill viajava muito. Sabia que estava em casa apenas quando vinha ao Merlotte’s, o que fazia ocasionalmente para conviver com os nativos e para beber O positivo quente. Preferia TrueBlood, a marca mais cara de sangue sintético japonês. Dissera-me que anulava quase por completo a sua sede de sangue fresco bebido da fonte. Desde que assistira a um episódio da ânsia sanguinária de Bill, podia dar graças a Deus pela existência do TrueBlood. Às vezes, sentia muito a falta de Bill.
Apliquei-me um safanão mental. Ultrapassar um momento negativo. Seria essa a missão do dia. Nada de preocupações! Nada de medo! Vinte seis anos de idade e livre! A trabalhar! Com a casa paga! Dinheiro
no banco! Tudo aquilo era positivo.
O parque de estacionamento estava cheio quando cheguei ao bar. Percebi que teria uma noite ocupada. Contornei o edifício até à entrada de serviço. Sam Merlotte, o proprietário e meu patrão, vivia ali, numa bela e espaçosa caravana, que tinha até um pequeno pátio rodeado por uma sebe, que, para Sam, fazia as vezes da tradicional cerca de tábuas brancas. Tranquei o carro e dirigi-me à porta dos fundos usada pelos funcionários e permitindo a entrada no corredor com acesso às casas de banho dos homens e das senhoras, a um grande armazém e ao gabinete de Sam. Guardei a bolsa e o casaco numa gaveta vazia da secretária, puxei para cima as meias vermelhas, abanei a cabeça para ajeitar o cabelo e atravessei a porta (que estava quase sempre aberta) que conduzia à divisão ampla do bar/restaurante. Não que a cozinha produzisse algo além das coisas mais básicas: hambúrgueres, frango, batatas fritas e anéis de cebola, saladas no Verão e chili no Inverno.
Sam era o empregado de bar, o segurança e, por vezes, o cozinheiro, mas, ultimamente, tínhamos a sorte de ter essa posição preenchida. As alergias de Sam tinham atacado em força, desaconselhando que mexesse em comida. O novo cozinheiro respondera a um anúncio colocado na semana anterior. Os cozinheiros pareciam nunca aguentar muito no Merlotte’s, mas esperava que Sweetie Des Arts se demorasse algum tempo. Chegava a horas, era boa no que fazia e nunca dava problemas ao resto dos funcionários. Na realidade, era tudo o que se poderia desejar. O nosso cozinheiro anterior, um homem, dera grande esperança à minha amiga Arlene de poder ser ele o Homem da Sua Vida (nesse caso, seria o quarto ou quinto Homem da Sua Vida), antes de se pirar numa noite com os seus pratos, os garfos e o leitor de CDs. Os filhos dela ficaram destroçados. Não por gostarem do tipo, mas porque sentiam a falta do leitor de CDs.
Embati contra uma muralha de ruído e fumo de cigarro que me fazia sentir como se entrasse noutro universo. Os fumadores sentavam-se todos no lado ocidental do bar, mas o fumo parecia não saber que devia ficar desse lado. Esbocei um sorriso e fui para trás do bar, dando uma palmada amigável no braço de Sam. Depois de encher com mestria um copo de cerveja, fazendo-o deslizar para junto de um cliente, colocou outro copo por baixo da torneira e recomeçou o processo.
— Como vão as coisas? — perguntou, com cautela. Conhecia o problema de Jason porque tinha estado comigo na noite em que o descobri trancado numa arrecadação em Hotshot. Mas tínhamos de ter cuidado com o que dizíamos. Os vampiros tinham tornado pública a sua existência, mas os metamorfos e lobisomens continuavam a viver em segredo. O submundo das criaturas sobrenaturais esperava para ver como os vampiros se saíam antes de seguir o seu exemplo.
— Melhor do que esperava — sorri-lhe, não precisando de erguer muito a cabeça, já que Sam não é um homem alto. Tem um físico magro, mas é muito mais forte do que parece. Terá trinta e tal anos (pelo menos, é o que penso) e tem cabelo de um louro arruivado, que lhe cobre a cabeça como um halo. É um bom homem e um excelente patrão. Também é um metamorfo e pode transformar-se em qualquer animal. Na maioria das vezes, Sam transforma-se num collie com uma pelagem fabulosa. Costuma vir a minha casa e deixo-o dormir no tapete da sala. — Vai ficar bem.
— Fico feliz — disse. Não consigo ler as mentes dos metamorfos com a facilidade com que leio mentes humanas, mas consigo perceber se uma disposição é sincera ou não. Sam estava feliz porque eu estava feliz.
— Quando partes? — perguntei. Tinha aquele olhar distante, o olhar que dizia que, mentalmente, já corria pela floresta atrás de opossuns.
— Assim que o Terry chegue. — Voltou a sorrir-me, mas, daquela vez, o sorriso foi um pouco forçado. Sam começava a ficar nervoso.
A porta da cozinha ficava junto ao extremo ocidental do bar e dirigi-me a ela para dizer olá a Sweetie. Sweetie era uma morena quarentona e ossuda e usava muita maquilhagem para alguém que ficaria escondida na cozinha durante toda a noite. Também parecia um pouco mais inteligente, talvez com mais anos de escola, do que os cozinheiros anteriores do Merlotte’s.
— Estás bem, Sookie? — perguntou, virando um hambúrguer enquanto falava. Sweetie mantinha-se em movimento constante na cozinha e não gostava que se atravessassem no seu caminho. O adolescente que a ajudava e que também servia às mesas morria de medo de Sweetie e esforçava-se por se esquivar aos seus movimentos do fogão para a fritadeira. O rapaz compunha os pratos, fazia as saladas e ia à janela de serviço transmitir às empregadas qual dos pedidos estava pronto. Lá fora, Holly Cleary e a sua melhor amiga, Danielle, trabalhavam arduamente. Pareceram as duas aliviadas quando me viram entrar. Danielle trabalhava na secção de fumadores a oeste e Holly costumava trabalhar na área intermédia à frente do bar. Eu ocupava-me da secção oriental quando estávamos as três de serviço.
— Parece que é melhor começar — disse, dirigindo-me a Sweetie.
Esboçou-me um sorriso breve e voltou-se novamente para o fogão. O adolescente amedrontado, cujo nome ainda não sabia, cumprimentou-me com um gesto da cabeça e continuou a carregar a máquina de lavar louça.
Desejei que Sam me tivesse chamado antes de as coisas ficarem tão caóticas. Não me teria importado de vir um pouco mais cedo. Mas era claro que, naquela noite, não pensava como normalmente fazia. Comecei a ocupar-me das mesas da minha secção, trazendo bebidas e levantando pratos, recolhendo pagamentos e trazendo trocos.
— Empregada! Traz-me um Red Stuff ! — A voz era desconhecida e o pedido era invulgar. Red Stuff era o sangue artificial mais barato e apenas os vampiros recentes o pediriam. Tirei uma garrafa do frigorífico de porta branca e enfiei-a no microondas. Enquanto aquecia, procurei o vampiro entre a multidão. Estava sentado com a minha amiga Tara Thornton. Nunca o vira antes, o que me deixava preocupada. Tara saíra com um vampiro mais velho (muito mais velho: Franklin Mott superava Tara em anos humanos quando morreu e passara mais de trezentos anos como vampiro), que lhe dava prendas luxuosas... como um Camaro. Que faria ela com aquele tipo novo? Franklin, pelo menos, tinha melhores maneiras.
Coloquei a garrafa aquecida num tabuleiro e levei-a até à mesa ocupada pelo casal. A iluminação nocturna do Merlotte’s não é particularmente boa, é assim que os clientes a preferem, e foi só quando me aproximei que pude apreciar o acompanhante de Tara. Era magro e de ombros estreitos, com cabelo penteado para trás. Tinha unhas longas e uma face aguda. Pensei que seria atraente, de certa forma. Para quem apreciasse uma dose generosa de perigo com o sexo.
Pousei a garrafa à sua frente e lancei um olhar inseguro a Tara. Como era habitual, estava com óptimo aspecto. Tara é alta, esbelta, com cabelo escuro. E tem um armário cheio de roupa maravilhosa. Superou uma infância verdadeiramente horrível, conseguiu ser proprietária de um negócio e fazer parte da associação comercial. A seguir, começou a sair com o vampiro rico, Franklin Mott, e deixou de partilhar a sua vida comigo.
— Sookie — disse —, quero apresentar-te o Mickey, amigo do Franklin. — Pelo seu tom de voz, não parecia querer realmente que nos conhecêssemos. Parecia desejar que nunca tivesse vindo trazer a bebida de Mickey. O seu copo estava quase vazio, mas disse «não» quando lhe perguntei se queria outro.
Troquei acenos de cabeça com o vampiro. Não apertam as mãos. Habitualmente, pelo menos. Olhava-me enquanto bebia um gole de sangue engarrafado, com olhos tão frios e hostis como os de uma serpente. Se era amigo do ultra-urbano Franklin, eu era uma bolsa de seda. Teria sido contratado por ele. Talvez como guarda-costas? Porque daria Franklin um guarda-costas a Tara?
Era óbvio que Tara não pretendia falar abertamente diante daquele tipo nojento e, por isso, disse-lhe:
— Vemo-nos depois — e levei o dinheiro de Mickey para a caixa.
Estive ocupada durante toda a noite, mas, nos momentos de pausa, pensei no meu irmão. Pela segunda noite, andaria a correr ao luar com os outros animais. Sam partira como um tiro assim que Terry Bellefleur chegou, mesmo com o cesto de papéis do seu gabinete cheio de lenços de papel amarrotados. A sua face tinha ficado tensa, em antecipação.
Era uma daquelas noites que me fazia pensar como podiam os humanos à minha volta ignorar por completo o mundo que funcionava em paralelo com o nosso. Apenas uma ignorância intencional conseguiria alhear-se do ar carregado de magia. Só uma falta de imaginação conjunta podia justificar que as pessoas não pensassem no que aconteceria na escuridão em seu redor.
Mas recordei-me que, há não muito tempo, estivera tão intencionalmente cega como qualquer um dos clientes do Merlotte’s. Até mesmo quando os vampiros fizeram o anúncio mundial cuidadosamente coordenado da realidade da sua existência, poucas autoridades ou cidadãos pareceram dar o passo mental seguinte: «Se os vampiros existem, que outras coisas poderão esconder-se além da luz?»
Por curiosidade, comecei a ler as mentes em redor, testando-as e procurando os seus medos. A maioria das pessoas no bar pensava em Mickey. As mulheres, e alguns homens, pensavam como seria estar com ele. Até Portia Bellefleur, a apática advogada, espreitava sobre o ombro do seu apaixonado conservador para estudar Mickey. Aquela curiosidade espantava-me. Mickey era assustador. Isso anulava qualquer possibilidade de atracção física que pudesse sentir por ele. Mas tinha muitas provas de que os outros humanos no bar não sentiam o mesmo.
Sempre conseguira ler mentes. Essa capacidade não era propriamente um dom. A mente da maior parte das pessoas não merece ser lida. Os seus pensamentos são aborrecidos, nojentos, desapontantes, mas raramente são interessantes. Bill ajudou-me a aprender como bloquear, pelo menos, parte do ruído. Antes das suas dicas, fora como sintonizar cem estações de rádio em simultâneo. Algumas ouviam-se com clareza cristalina, algumas eram remotas e algumas, como os pensamentos dos metamorfos, eram interrompidas pela
estática que obscurecia o conteúdo. Mas todas contribuíam para a cacofonia. Não admirava que tanta gente me tratasse como se fosse atrasada mental.
Os vampiros eram silenciosos. Era o que tinham de melhor, pelo menos do meu ponto de vista. Estavam mortos. E as suas mentes também. Só uma vez, quando o rei fazia anos, conseguia captar alguma coisa da mente de um vampiro.
Shirley Hunter, o patrão do meu irmão nas estradas do condado, perguntou-me onde estava Jason quando trouxe um jarro de cerveja à sua mesa. Shirley era universalmente conhecido como «Peixe-Gato».
— O teu palpite é tão bom como o meu — disse, mentindo-lhe e conseguindo ganhar uma piscadela de olho. O primeiro palpite acerca do paradeiro de Jason envolvia sempre uma mulher e era frequente que o segundo incluísse outra mulher. Os homens que rodeavam a mesa, vestindo ainda as roupas de trabalho, riram mais do que exigia a minha resposta, mas era verdade que já tinham bebido uma grande quantidade de cerveja.
Corri de volta ao balcão para ir buscar três uísques com Coca-Cola preparados por Terry Bellefleur, o primo de Portia, que trabalhava sob pressão. Terry era um veterano do Vietname com muitas cicatrizes físicas e emocionais e parecia aguentar-se bem naquela noite movimentada. Apreciava tarefas simples que exigissem concentração. O seu cabelo cor de avelã com manchas grisalhas estava preso num rabo-de-cavalo e mantinha uma expressão atenta enquanto manuseava as garrafas. As bebidas fi caram prontas num instante e Terry sorriu-me enquanto as colocava no tabuleiro. Um sorriso de Terry era uma coisa rara e aqueceu-me o coração.
Foi quando me voltava com o tabuleiro sob a mão direita que os sarilhos começaram. Um estudante da Louisiana Tech de Ruston envolveu-se numa luta de classes mano-a-mano com Jeff LaBeff , um labrego com muitos filhos e que quase ganhava a vida a guiar um camião de lixo. Talvez fosse apenas um caso de dois tipos casmurros em colisão e não tivesse grande coisa de conflito entre cidade e campo (não que estivéssemos assim tão próximos de Ruston).
Fosse qual fosse o motivo original da disputa, levei alguns segundos a perceber que a luta seria mais do que uma troca de gritos.
Nesses poucos segundos, Terry tentou intervir. Movendo-se com rapidez, colocou-se entre Jeff e o estudante e segurou os pulsos de ambos com firmeza. Pensei, por um minuto, que funcionaria, mas Terry não era tão jovem ou activo como fora outrora e veio tudo abaixo.
— Tu conseguirias parar isto — disse a Mickey, num tom furioso, enquanto passava pela mesa que ocupava com Tara a caminho de uma tentativa de restabelecer a paz.
Recostou-se na cadeira e beberricou.
— Não é a minha função — respondeu, calmamente.
Percebi o que ele queria dizer, mas isso não contribuiu para que se tornasse um vampiro mais simpático, sobretudo porque, logo a seguir, o estudante se voltou e tentou esmurrar-me quando me aproximei dele por trás. Falhou e acertei-lhe na cabeça com o tabuleiro. Cambaleou para um lado, talvez sangrando um pouco, e Terry conseguiu dominar Jeff LaBeff , que procurava um pretexto para desistir da zaragata.
Incidentes como aquele começavam a acontecer com maior frequência, sobretudo quando Sam estava ausente. Parecia-me evidente que precisávamos de um segurança. Pelo menos, nas noites de fim-de-semana... e nas noites de lua cheia.
O estudante ameaçou processar-me.
— Como te chamas? — perguntei.
— Mark Duffy — respondeu o jovem, com as mãos sobre a cabeça.
— De onde és, Mark?
— Minden.
Avaliei rapidamente a sua roupa, o seu porte e o conteúdo da sua cabeça.
— Vou gostar de ligar à tua mamã para lhe dizer que tentaste bater numa mulher — disse-lhe. Empalideceu e não voltou a falar em processos. Foi-se embora com os amigos pouco depois. Ajuda sempre saber qual será a ameaça mais eficaz.
Também obrigámos Jeff a sair.
Terry voltou ao seu posto atrás do balcão e começou a servir bebidas, mas coxeava ligeiramente e tinha uma expressão dorida, que me preocupava. As experiências de Terry na guerra não o deixaram muito estável. Bastava de perturbação por uma noite.
Mas, claro, a noite ainda não tinha chegado ao fim.
Cerca de uma hora depois da confusão, uma mulher entrou no Merlotte’s. Era pouco vistosa e vestia-se de forma discreta, com calças de ganga velhas e um casaco de camuflado. Calçava botas que teriam sido magníficas quando eram novas, mas tinham-se passado muitos anos desde então. Não trazia bolsa e tinha as mãos enfiadas nos bolsos.
Havia vários indicadores que fizeram estremecer as minhas antenas mentais. Em primeiro lugar, a aparência da rapariga não era normal. Uma mulher local podia vestir-se assim se fosse caçar ou trabalhar no campo, mas não para vir ao Merlotte’s. Para sair à noite, a maioria das mulheres aperaltava-se. Aquela mulher estava preparada para o trabalho, mas não era uma prostituta. Pelos mesmos motivos.
Isso significava droga.
Para proteger o bar na ausência de Sam, concentrei-me nos seus pensamentos. As pessoas não pensam com frases completas, claro, e tive de ajeitar o que captei, mas o que lhe ia pela cabeça era algo como: «Restam três vidros a ficar velhos a perder poder tenho de vender esta noite para poder comprar mais em Baton Rouge. Vampiro dentro do bar se me apanha com sangue de vampiro estou morta. Esta terra é uma lixeira. Volto à cidade assim que puder.»
Era uma drenadora. Ou talvez fosse apenas uma distribuidora. O sangue de vampiro era a droga mais poderosa do mercado, mas, claro, os vampiros não o cediam de forma voluntária. Drenar um vampiro era uma ocupação perigosa, inflacionando o preço dos minúsculos frascos de sangue até quantias espantosas.
Que obtinha o consumidor em troca de uma grande quantidade de dinheiro? Dependendo da idade do sangue (ou seja, do tempo passado desde que fora extraído ao seu proprietário) e da idade do vampiro que o fornecera, podia obter muito. Havia a sensação de omnipotência, a força multiplicada, a visão e a audição apuradas. Mas, acima de tudo para qualquer americano, uma aparência física melhorada.
Mesmo assim, apenas um idiota beberia sangue de vampiro comprado no mercado negro. Por um lado, sabia-se que os resultados eram imprevisíveis. Além da variação dos efeitos, a sua duração podia ir das duas semanas aos dois meses. Por outro lado, algumas pessoas enlouqueciam quando o sangue lhes entrava no sistema. Por vezes, eram dominados por uma loucura homicida. Ouvira falar de traficantes que vendiam a compradores ingénuos sangue de porco ou sangue humano contaminado. Mas o principal motivo para evitar o mercado negro de sangue de vampiro era este: os vampiros odiavam os drenadores e odiavam os consumidores de sangue drenado (normalmente conhecidos como carraças). E é desaconselhável ter um vampiro irritado connosco.
Não havia polícias fora de serviço no Merlotte’s naquela noite. Sam andava a abanar a cauda algures. Não me agradava informar Terry porque não sabia como reagiria. Precisava de lidar com aquela mulher.
A verdade era que tentava não interferir em coisas que apenas sabia graças à telepatia. Se metesse a colher de cada vez que descobria alguma coisa que afectaria as vidas que me rodeavam (como saber que o administrador do condado desviava dinheiro ou que um dos detectives da polícia local aceitava subornos), não conseguiria viver em Bon Temps. E era a minha terra. Mas não podia permitir que aquela mulher escanzelada vendesse o seu veneno no bar de Sam.
Sentou-se num banco vazio junto ao balcão e pediu uma cerveja a Terry. O olhar deste demorou-se nela. Também Terry percebeu que havia algo de errado na estranha.
Vim buscar um pedido e coloquei-me junto a ela. Precisava de um banho e tinha estado dentro de uma casa aquecida por uma lareira. Forcei-me a tocar-lhe, o que melhorava sempre a recepção. Onde estava o sangue? Estava num bolso do casaco. Óptimo.
Sem demoras, despejei-lhe um copo de vinho pelo peito abaixo.
— Bolas! — exclamou, saltando do banco e passando a mão pelo casaco sem qualquer efeito. — És a maior desastrada que já vi!
— Desculpa — disse-lhe, fingindo-me envergonhada enquanto pousava o tabuleiro e trocava um olhar breve com Terry. — Deixa-me pôr água com gás nisso. — Sem esperar a sua permissão, despi-lhe o casaco. Quando percebeu o que fazia e começou a resistir, o casaco estava já nas minhas mãos. Passei-o a Terry sobre o balcão. — Põe água com gás na mancha, por favor. — Usara aquele estratagema antes. Tive sorte por estar frio e ter a mercadoria no casaco e não num bolso das calças. Isso teria exigido demasiado da minha criatividade.
Por baixo do casaco, a mulher vestia uma camisola muito velha dos Dallas Cowboys. Começou a tremer e pensei se teria consumido drogas mais convencionais. Terry despejou água com gás sobre a nódoa de vinho de forma teatral. Seguindo a minha dica, introduziu a mão nos bolsos. Baixou o olhar com repulsa para o que encontrou e ouvi um tilintar que indicava que tinha lançado os frascos ao caixote de lixo por trás do balcão. Voltou a colocar o resto nos bolsos.
A mulher abriu a boca para gritar a Terry e percebeu que não conseguia. Terry fitava-a directamente, desafiando-a a referir o sangue. As pessoas em redor observavam com interesse. Sabiam que algo se passava, mas não sabiam o quê porque tudo sucedera com grande rapidez. Quando Terry teve a certeza de que a mulher não começaria a gritar, passou-me o casaco. Enquanto o erguia para que enfiasse os
braços nas mangas, Terry disse-lhe:
— Não voltes aqui.
Se continuássemos a expulsar gente àquele ritmo, não nos restariam muitos clientes.
— Labrego fi ho da mãe — disse ela. A multidão em redor susteve a respiração em uníssono. (Terry era quase tão imprevisível como um consumidor de sangue de vampiro.)
— Não me importa o que me chamares — disse. — Acho que um insulto teu não é insulto nenhum. Mantém-te longe. — Suspirei profundamente de alívio.
A mulher abriu caminho aos empurrões por entre a multidão. Todos os presentes acompanharam o seu progresso em direcção à porta, incluindo Mickey, o vampiro. Fazia qualquer coisa com um dispositivo que segurava nas mãos. Parecia um daqueles telemóveis capazes de tirar fotografias. Pensei a quem enviaria a imagem. Pensei se a mulher conseguiria chegar a casa.
De forma perfeitamente intencional, Terry decidiu não perguntar como soubera que a mulher tinha algo ilegal nos bolsos. Era outra coisa estranha nas pessoas de Bon Temps. Os rumores a meu respeito circulavam desde que me conseguia lembrar, desde que era pequena e os meus pais quiseram avaliar a minha saúde mental. E, no entanto, apesar das provas ao seu dispor, quase toda a gente que conhecia preferia ver-me como uma rapariga pouco esperta e peculiar, sem reconhecer a minha estranha habilidade. Claro que tinha cuidado para não a esfregar nas suas caras. E mantinha a boca fechada. Fosse como fosse, Terry tinha demónios próprios a combater. Sobrevivia com uma pensão do governo e fazia a limpeza do Merlotte’s e de outros estabelecimentos pela manhã. Substituía Sam umas três ou quatro vezes por mês. O resto do seu tempo pertencia-lhe e ninguém parecia saber o que fazia com ele. Lidar com pessoas deixava Terry exausto e noites como aquela não lhe faziam bem.
Foi uma sorte não ter estado no Merlotte’s na noite seguinte, quando estourou o caos.»