Sangue Fresco

Saga do Sangue Fresco nº1

Primeiro Capítulo

 

«    Esperava o vampiro há anos quando finalmente entrou no bar.

    Desde que os vampiros tinham saído do caixão dois anos antes (como se costumava dizer com escárnio), esperara que um deles visitasse Bon Temps. Tínhamos todas as outras minorias na nossa pequena cidade. Porque não a mais recente? Porque não os não‑mortos legalmente reconhecidos? Mas o Norte rural do Louisiana parecia não ser muito apelativo para os vampiros. Por outro lado, Nova Orleães era um verdadeiro centro de actividade vampírica (ou não tivesse Anne Rice escrito sobre o assunto).

    A viagem de carro entre Bon Temps e Nova Orleães não era assim tão longa e todos os clientes do bar diziam que, atirando uma pedra na esquina de uma rua, seria quase inevitável acertar em alguém. Apesar de isso não ser aconselhável.

    Mas eu continuava à espera do meu próprio vampiro.

    Pode dizer‑se que não saio muito. E não é por não ser bonita. Porque sou. Sou loura, tenho olhos azuis e vinte e cinco anos, as minhas pernas são fortes e o meu peito é considerável, com uma cinturinha de vespa. Fico bem na farda de Verão que Sam escolheu para as empregadas: calções pretos, camisola de manga curta branca, meias brancas, ténis Nike pretos.

    Mas tenho uma deficiência. É assim que gosto de a referir.

    Os clientes dizem que sou doida apenas.

    Seja como for, o resultado é que saía pouco. Por isso, as pequenas coisas positivas na minha vida têm um valor multiplicado.

    E ele, o vampiro, sentou‑se numa das minhas mesas.

    Percebi imediatamente o que era. Espantou‑me que mais ninguém se tivesse voltado para o olhar fixamente. Não conseguiam perceber! Mas, para mim, a pele dele parecia ter um brilho ténue e foi assim que soube.

    Poderia ter dançado de alegria e improvisei mesmo uma pequena coreografia junto ao balcão. Sam Merlotte, o patrão, ergueu o olhar da bebida que misturava e esboçou um leve sorriso. Peguei no tabuleiro e no bloco de notas e aproximei‑me da mesa do vampiro. Esperei que o baton não estivesse borrado e que o rabo‑de‑cavalo continuasse impecável. Sou um pouco ansiosa e conseguia sentir um sorriso puxando‑me os cantos da boca para cima.

    Parecia imerso em pensamentos e pude mirá‑lo de alto a baixo antes que voltasse os olhos para mim. Não chegaria ao metro e oitenta. Tinha cabelo castanho espesso penteado para trás e roçando‑lhe o colarinho. As patilhas pareciam estranhamente antiquadas. Era pálido, obviamente. Afinal, estava morto, acreditando nas velhas histórias. A teoria politicamente correcta, que os próprios vampiros aprovavam de forma pública, dizia que aquele tipo fora vítima de um vírus que o deixara aparentemente morto durante um par de dias e, a partir daí, alérgico à luz do sol, à prata e ao alho. Os pormenores dependiam do jornal que se lesse. Estavam todos cheios de coisas sobre vampiros.

    Os seus lábios eram encantadores e bem definidos e tinha sobrancelhas escuras arqueadas. O nariz projectava‑se do arco das sobrancelhas, como o nariz de um príncipe num mosaico bizantino. Quando finalmente ergueu os olhos, vi que eram ainda mais escuros do que o cabelo e que o branco em redor era incrivelmente límpido. 

    — Que deseja beber? — perguntei, quase demasiado feliz para articular as palavras.

    O vampiro ergueu as sobrancelhas.

    — Têm aquele sangue sintético engarrafado? — perguntou.

    —Não. Lamento muito. O Sam encomendou algum. Deve chegar na semana que vem.

    — Então traga‑me vinho tinto, por favor — disse com uma voz calma e cristalina, como um regato correndo sobre seixos. Ri‑me alto. Era demasiado perfeito.

    — Não ligue à Sookie, senhor. É maluca — disse uma voz familiar, vinda do compartimento encostado à parede. Toda a minha felicidade se desvaneceu, apesar de ainda conseguir sentir o sorriso nos lábios. O vampiro fitou‑me, vendo a alegria abandonar‑me a expressão.

    — Trago já o seu vinho — disse, afastando‑me, sem sequer olhar a cara arrogante de Mack Rattray. Estava lá quase todas as noites com a mulher, Denise. Chamava‑lhes Senhor e Senhora Ratazana. Desde que se mudaram para uma caravana alugada em Four Tracks Corner, esforçavam‑se por me fazer a vida miserável. Esperava que partissem de Bon Temps tão subitamente como haviam chegado.

    Quando entraram no Merlotte’s pela primeira vez, cometi a indiscrição de ouvir os seus pensamentos (sim, eu sei que não é uma atitude muito elevada). Mas aborreço‑me como toda a gente e, apesar de passar a maior parte do meu tempo a bloquear os pensamentos alheios que tentam infiltrar‑se no meu cérebro, por vezes não consigo resistir. E foi assim que descobri algumas coisas sobre os Rattray que talvez mais ninguém soubesse. Por um lado, sabia que tinham estado presos, apesar de não saber porquê. Por outro, lera os pensamentos enojantes de Mack Rattray sobre esta vossa amiga. E, a seguir, descobri nos pensamentos de Denise que abandonara um bebé que tivera dois anos antes, um bebé que não era de Mack. 

    Além disto tudo, não davam gorjetas.

    Sam encheu um copo com o vinho tinto da casa, olhando a mesa do vampiro enquanto o colocava no meu tabuleiro.

    Quando voltou a olhar para mim, pude ver que também sabia aquilo que era o nosso novo cliente. Os olhos de Sam são tão azuis como os de Paul Newman, em contraste com os meus, de um azul mais acinzentado. Sam também é louro, mas tem o cabelo mais fino e a cor aproxima‑se de um amarelo‑torrado. Está sempre levemente queimado pelo sol e, apesar de parecer magro quando vestido, vi‑o descarregar carrinhas sem camisa e a sua musculatura do tronco é considerável. Nunca ouço os seus pensamentos. É o patrão. Tive de me despedir de empregos por descobrir coisas sobre os patrões que preferia não ter sabido.

    Sam não fez qualquer comentário e limitou‑se a passar‑me o vinho. Olhei o copo para me certificar de que estava perfeitamente limpo e voltei à mesa do vampiro.

    — Aqui tem — disse, com cerimónia, colocando o copo com cuidado na mesa à sua frente. Voltou a olhar‑me e aproveitei a oportunidade para lhe apreciar os belos olhos enquanto podia. — Bom proveito — disse‑lhe, orgulhosa.

    Atrás de mim, Mack Rattray berrou:

    — Ei, Sookie! Precisamos de outro jarro de cerveja!

    Suspirei e voltei‑me para recolher o jarro vazio da mesa das Ratazanas. Reparei que Denise estava na sua melhor forma. Vestia um top revelador e calções curtos, com o emaranhado de cabelo castanho cobrindo‑lhe a cabeça com madeixas atraentes. Não era realmente bonita, mas era tão exuberante e confiante que se levava algum tempo a percebê‑lo.

    Um pouco mais tarde, para meu desconsolo, vi que os Rattray se tinham mudado para a mesa do vampiro. Falavam com ele. Não o via responder muito, mas também não se ia embora.

    — Olha para aquilo! — disse a Arlene, outra das empregadas, sem esconder o desagrado. Arlene é uma ruiva sardenta, dez anos mais velha do que eu e veterana de quatro casamentos. Tem dois filhos e, ocasionalmente, acho que me considera a sua terceira criança.

    — Tipo novo, hã? — disse, com interesse limitado. Arlene namorava com Rene Lenier e, apesar de eu não conseguir perceber a atracção, parecia satisfeita. Penso que Rene foi o seu segundo marido.

    — É um vampiro — disse, forçada a partilhar o meu encanto com alguém.

    — A sério? Aqui? Vejam só… — comentou, sorrindo um pouco para mostrar que percebia a minha satisfação. — Não pode ser muito esperto para estar com as Ratazanas. Mas é verdade que Denise lhe está a montar um espectáculo e tanto.

    Só percebi quando Arlene o referiu. É muito melhor do que eu a avaliar situações sexuais devido à sua grande experiência e à minha falta dela.

    O vampiro tinha fome. Sempre ouvira dizer que o sangue sintético desenvolvido pelos japoneses conseguia assegurar a nutrição dos vampiros mas sem satisfazer a fome e era por isso que existiam «acidentes lamentáveis» de tempos a tempos. (Era esse o eufemismo vampírico para a morte sangrenta de um humano). E ali estava Denise Rattray, acariciando o pescoço, movendo a mão de um lado para o outro… Que cabra.

    Jason, o meu irmão, entrou no bar nesse momento e aproximou‑se para me dar um abraço. Sabe que as mulheres apreciam um homem que é bondoso para a família e para os deficientes e abraçar‑me proporciona‑lhe esse benefício duplo à reputação. Não que precise de benefícios adicionais aos que possui limitando‑se a ser ele próprio. É bonito. Também pode ser velhaco, mas a maioria das mulheres parece perfeitamente disposta a ignorar esse pormenor. 

    — Olá, mana. Como está a avó?

    — Está bem. Na mesma. Vem visitá‑la.

    — Claro que sim. Quem está cá hoje?

    — Vê por ti próprio. — Reparei que, quando Jason olhou em redor, houve um erguer de mãos femininas até ao cabelo, até às blusas e aos lábios.

    — Ei. Está ali a DeeAnne. Está livre?

    — Veio com um camionista de Hammond. Foi à casa de banho. É melhor teres cuidado.

    Jason sorriu‑me e maravilhei‑me por as outras mulheres não conseguirem ver o egoísmo daquele sorriso. Até Arlene ajeitava a camisola quando Jason entrava e, após quatro maridos, devia saber alguma coisa sobre como avaliar homens. A outra empregada, Dawn, compôs o cabelo e endireitou as costas para realçar as mamas. Jason limitou‑se a acenar‑lhe amigavelmente. Ela fingiu um esgar de desdém. Estava chateada com Jason mas, mesmo assim, queria que ele reparasse nela.

    Fiquei muito ocupada. Todos vinham ao Merlotte’s no sábado à noite durante algum tempo e acabei por perder de vista o meu vampiro. Quando voltei a poder procurá‑lo, vi que conversava com Denise. Mack olhava‑o com uma expressão de tamanha avidez que me deixou preocupada.

    Aproximei‑me da mesa, fitando Mack. Finalmente, baixei as defesas e ouvi.

    Mack e Denise tinham estado presos por drenar vampiros.

    Profundamente angustiada, consegui, mesmo assim, levar um jarro de cerveja e alguns copos até uma mesa rodeada por quatro clientes ruidosos. Porque se dizia que o sangue dos vampiros conseguia aliviar temporariamente os sintomas de doença e aumentar a potência sexual, sendo uma espécie de combinação de Prednisona com Viagra, existia um grande mercado negro para o sangue de vampiro genuíno e não diluído. Em todos os mercados há fornecedores e acabara de descobrir dois: o miserável casal Ratazana. Tinham capturado e drenado vampiros, vendendo os pequenos frascos de sangue a preços que chegavam aos duzentos dólares cada um. Há dois anos que era a droga mais apetecida. Alguns compradores enlouqueciam depois de beber sangue puro de vampiro, mas isso não diminuía a procura.

    Habitualmente, os vampiros drenados não sobreviviam durante muito tempo. Os drenadores trespassavam‑nos com uma estaca ou limitavam‑se a abandoná‑los em terreno aberto. Quando o sol nascia, era o fim. Também havia relatos ocasionais de inversão dos papéis, quando os vampiros conseguiam libertar‑se e deixavam para trás os drenadores sem vida.

    O meu vampiro levantava‑se e saía com as Ratazanas. Mack cruzou o olhar com o meu e percebi que a minha expressão o deixava perturbado. Voltou a cara, ignorando‑me como ignorava qualquer outra pessoa.

    Aquilo deixava‑me furiosa. Realmente furiosa.

    Que deveria fazer? Enquanto tentava ultrapassar o turbilhão mental, eles saíam pela porta. O vampiro acreditaria em mim se corresse atrás deles e lhe contasse? Mais ninguém acreditava. Ou, se acreditassem, iriam odiar‑me e recear‑me por ler os pensamentos escondidos na cabeça das pessoas. Arlene implorara‑me para ler os pensamentos do quarto marido quando ele veio buscá‑la numa noite por estar certa de que ele pensava em abandoná‑la a ela e aos miúdos, mas não o fiz porque queria manter a única amiga que me restava. Não conseguira pedir‑mo directamente porque isso seria admitir que eu tinha este dom, esta maldição. E as pessoas não eram capazes de o admitir. Precisavam de acreditar que era maluca. E, por vezes, era‑o realmente.

    Hesitei, confusa, assustada e furiosa até perceber que precisava de agir. O olhar que Mack me lançou foi a última gota. Olhou‑me como se fosse um risco insignificante.

    Corri até ao balcão, aproximando‑me de Jason, ocupado a encantar DeeAnne. A opinião generalizada dizia que não seria necessário grande encantamento. O camionista de Hammond olhava com desagrado do lado oposto.

    — Jason — disse, urgentemente. Ele voltou‑se, lançando‑me um olhar de aviso. — Ainda tens aquela corrente na carrinha?

    — Não saio de casa sem ela — disse, languidamente, procurando sinais de perigo na minha expressão. — Vais lutar com alguém, Sookie?

    Sorri‑lhe, tão habituada a sorrisos falsos que a reacção me era natural.

    — Espero que não — disse, alegremente.

    — Precisas de ajuda? — Afinal, era meu irmão.

    — Não, obrigada — disse‑lhe, tentando parecer convincente. E fui ter com Arlene. — Olha, tenho de sair um pouco mais cedo. As minhas mesas têm pouca gente. Podes substituir‑me? — Não me lembrava de alguma vez ter pedido tal coisa a Arlene, apesar de lhe eu a ter substítuido em muitas ocasiões. Também se ofereceu para me ajudar. — Não é preciso — disse. — Se conseguir, ainda regresso. Se limpares as minhas mesas, limpo‑te a caravana.

    Arlene acenou avidamente com a cabeça, fazendo dançar a cabeleira ruiva.

    Apontei a porta dos funcionários e fiz os dedos caminhar, indicando a Sam que me ia.

    Ele acenou afirmativamente. Não parecia satisfeito.

    E lá fui eu pela porta dos fundos, tentando silenciar os pés sobre a gravilha. O parque de estacionamento dos funcionários ficava nas traseiras do bar, acessível por uma porta que abria para o armazém. Estava ocupado pelo carro do cozinheiro, pelo de Arlene, pelo de Dawn e pelo meu. À minha direita, a leste, a carrinha de Sam estava parada à frente da sua caravana.

    Saí do parque coberto de gravilha e passei ao alcatrão do parque de estacionamento dos clientes, que era maior, a oeste do bar. A floresta rodeava a clareira ocupada pelo Merlotte’s e a gravilha cobria também os limites do parque. Sam mantinha‑o bem iluminado e o brilho surreal dos candeeiros altos tornava tudo estranho.

    Vi o carro desportivo vermelho e amolgado do Senhor e da Senhora Ratazana e percebi que estariam perto.

    Finalmente, encontrei a carrinha de Jason. Era preta, decorada com chamas azuis e rosa nos lados. Adorava dar nas vistas. Aproximei‑me da traseira e vasculhei na caixa, procurando a corrente de aros metálicos grossos que transportava consigo para a eventualidade de se envolver numa rixa. Puxei‑a e transportei‑a contra o corpo para não fazer barulho.

    Pensei por um segundo. O único local vagamente sossegado para onde as Ratazanas poderiam ter atraído o vampiro era a extremidade do parque de estacionamento, onde a copa das árvores caía sobre os carros. Avancei nessa direcção, tentando mover‑me com rapidez mas em silêncio.

    Ia parando pelo caminho, pondo‑me à escuta. Não tardei a ouvir um gemido e vozes difusas. Serpenteei entre os carros e avistei‑os precisamente onde esperara que estivessem. O vampiro estava deitado de costas no chão, com a face alterada pela agonia e o brilho de correntes cruzando‑lhe os pulsos e prolongando‑se até aos tornozelos. Prata. Havia já dois pequenos frascos de sangue no chão ao lado dos pés de Denise e, enquanto eu observava, ajustou um novo tubo de ensaio à agulha. O torniquete acima do cotovelo cravava‑se cruelmente no braço.

    Estavam de costas voltadas para mim e o vampiro ainda não me vira. Desembrulhei a corrente, deixando um metro solto. Quem atacaria primeiro? Eram ambos pequenos e viciosos.

    Recordei o olhar de desprezo de Mack e o facto de nunca me ter deixado gorjeta. Seria ele o primeiro.

    Nunca lutara com ninguém antes. De alguma forma, sentia‑me ansiosa pela experiência.

    Saí de trás de uma carrinha e lancei a corrente. Caiu sobre as costas de Mack, ajoelhado ao lado da vítima. Gritou e ergueu‑se de um salto. Depois de um olhar rápido, Denise dedicou‑se a aplicar o terceiro tubo de ensaio. A mão de Mack desceu até à bota e voltou a subir com um brilho repentino. Engoli em seco. Tinha uma faca.

    — Ora bolas… — disse, sorrindo‑lhe.

    — Sua cabra maluca! — berrou. Parecia ávido por usar a faca. Estava demasiado concentrada para manter a barreira mental e não consegui evitar uma visão clara do que Mack me queria fazer. Enfureceu‑me. Lancei‑me sobre ele com toda a intenção de o ferir o mais possível. Mas estava preparado e, enquanto eu fazia girar a corrente, lançou‑se para a frente com a faca. Tentou cortar‑me o braço e falhou por muito pouco. A corrente rodeou‑lhe o pescoço escanzelado. O grito triunfal de Mack transformou‑se num gargarejo. Deixou cair a faca e segurou os aros metálicos com ambas as mãos. Sem conseguir respirar, deixou‑se cair de joelhos no pavimento, puxando‑me a corrente das mãos.

    Lá se ia a corrente de Jason. Baixei‑me e peguei na faca, segurando‑a como se soubesse usá‑la. Denise avançava, parecendo uma bruxa saloia, coberta pelas linhas e sombras lançadas pelas luzes de segurança.

    Parou quando viu que segurava a faca de Mack. Praguejou e disse coisas terríveis. Esperei até se calar para dizer:

    — Põe‑te a andar. Depressa.

    O olhar de ódio quase abria buracos na minha pele. Tentou levar os frascos de sangue mas disse‑lhe para os deixar. Limitou‑se a erguer Mack. Este continuava a debater‑se para respirar e a segurar a corrente. Denise arrastou‑o até ao carro e enfiou‑o no banco do passageiro. Tirando as chaves do bolso, sentou‑se ao volante.

    Ouvindo o motor, percebi subitamente que as Ratazanas tinham agora outra arma. Movendo‑me com rapidez inédita, corri até à cabeça do vampiro e disse‑lhe:

    — Empurra com os pés!

    Segurei‑o por baixo dos braços e puxei com toda a minha força. Ele percebeu e ajudou, movendo os pés como lhe dissera. Tínhamos chegado à linha de árvores quando o carro vermelho se lançou ruidosamente sobre nós. Denise não nos apanhou por pouco, forçada a mudar a trajectória para evitar embater num pinheiro. Em seguida, ouvi o som do motor poderoso do carro das Ratazanas a afastar‑se.

    — Uau! — Tentei recuperar o fôlego e ajoelhei‑me ao lado do vampiro porque as pernas não conseguiam suportar‑me. Inspirei profundamente durante um minuto, procurando normalizar a respiração. O vampiro moveu‑se um pouco e olhei‑o. Para meu horror, vi que se erguia fumo dos pulsos, nos pontos tocados pela corrente. — Ó, pobre coitado — disse, recriminando‑me por não cuidar imediatamente dele. Ainda a tentar recuperar o fôlego, comecei a libertá‑lo do que parecia ser uma longa e fina corrente de prata. — Coitadinho — murmurei, não me apercebendo imediatamente do absurdo do comentário. Tenho dedos ágeis e consegui libertar‑lhe rapidamente os pulsos. Pensei em como as Ratazanas teriam conseguido distraí‑lo para o prender com a corrente e dei comigo a corar enquanto o fazia.

    O vampiro ergueu os braços até ao peito enquanto lhe libertava as pernas. Os tornozelos estavam melhor porque os drenadores não se tinham dado ao trabalho de lhe puxar as calças de ganga para cima, não colocando a corrente sobre a pele nua.

    — Lamento não ter chegado mais depressa — desculpei‑me. — Vais sentir‑te melhor num minuto, não é? Queres que me vá embora?

    — Não.

    Aquilo fez‑me sentir muito bem até acrescentar:

    — Podem regressar e ainda não consigo enfrentá‑los.

    A sua voz calma parecia irregular, mas não posso dizer que ouvi a respiração acelerada.

    Esbocei‑lhe uma expressão azeda e, enquanto recuperava, tomei precauções. Voltei‑lhe as costas, dando‑lhe privacidade. Sei como é desagradável que nos observem fixamente enquanto sofremos. Sentei‑me no alcatrão, vigiando o parque de estacionamento. Vários carros partiram e outros chegaram, mas nenhum se aproximou de nós. Percebi pela deslocação de ar atrás de mim que o vampiro se pusera de pé.

    Não falou de imediato. Voltei a cabeça para a esquerda para olhá‑lo. Estava mais próximo do que pensara. Os seus grandes olhos escuros fixaram‑se nos meus. Os caninos estavam retraídos. Isso desiludiu‑me um pouco.

    — Obrigado — disse, friamente.

    Não estava eufórico por ter sido salvo por uma mulher. Típico.

    Porque estava a ser tão pouco delicado, achei que também podia fazer alguma coisa rude e ouvi‑o, abrindo a mente por completo.

    E… não ouvi nada.

    — Oh… — exclamei, percebendo o choque na minha própria voz e mal percebendo que falava em voz alta. — Não consigo ouvir‑te.

    — Obrigado! — repetiu o vampiro, movendo os lábios de forma exagerada.

    — Não é isso… Consigo ouvir‑te falar, mas… — e, na minha excitação, fiz algo que habitualmente nunca teria feito porque era demasiado pessoal e carente, revelando a minha deficiência. Voltei‑me para ele, pus as mãos de ambos os lados da sua cara pálida e olhei‑o fixamente. Concentrei‑me com toda a minha força. Nada. Era como ser forçada a ouvir constantemente num rádio estações que não podia escolher e, de repente, sintonizar uma frequência vazia.

    Era fantástico.

    Os seus olhos abriam‑se mais e tornavam‑se mais escuros, apesar de permanecer completamente imóvel.

    — Desculpa — consegui dizer, embaraçada. Afastei as mãos e recomecei a olhar o parque de estacionamento. Falei ao acaso sobre Mack e Denise, pensando constantemente em como era maravilhoso estar acompanhada por alguém que eu não conseguia ouvir a não ser que ele falasse. Como era belo o seu silêncio.

    — … achei melhor vir ver como estavas — concluí, sem ideia do que dissera antes.

    — Vieste salvar‑me. Foi corajoso — disse ele, com uma voz tão sedutora que teria feito DeeAnne saltar para fora das suas cuecas de nylon vermelho com um arrepio.

    — Pára com isso — disse eu, com rispidez, como o barulho de um terramoto.

    Pareceu surpreso, por um segundo, antes de a sua expressão retornar à lívida serenidade anterior.

    — Não tens medo de ficar sozinha com um vampiro faminto? — perguntou, com um tom matreiro e perigoso na voz.

    — Não.

    — Achas que, por teres vindo salvar‑me, estás segura? Que mantenho alguma sentimentalidade depois destes anos todos? É frequente que os vampiros se voltem contra quem confia neles. Não temos os mesmos valores dos humanos.

    — Muitos humanos voltam‑se contra quem confia neles — referi. Consigo ser pragmática. — Não sou completamente parva. — Estiquei o braço e voltei a cara. Enquanto esperava que recuperasse, enrolei a corrente das Ratazanas em redor do pescoço e dos braços.

    Vi‑o estremecer.

    — Mas tens uma artéria apetitosa na virilha — disse, depois de fazer uma pausa para se recompor, com a voz tão sinuosa como uma serpente num escorrega.

    — Nada de palavreado ordinário — disse‑lhe. — Não admito isso.

    Olhámo‑nos novamente em silêncio. Receei não voltar a vê‑lo. Afinal, aquela primeira visita ao Merlotte’s não fora propriamente um sucesso. Tentava absorver o máximo de pormenores. Recordaria durante muito, muito tempo, aquele encontro. Era algo raro. Como um tesouro. Queria voltar a tocar‑lhe a pele. Não conseguia recordar a sensação. Mas isso seria ultrapassar uma fronteira de decência e poderia ocasionar que ele fizesse algum disparate sedutor.

    — Gostarias de beber o sangue que recolheram? — perguntou ele, de forma inesperada. — Seria uma maneira de mostrar a minha gratidão. — Apontou os frascos sobre o alcatrão. — Diz‑se que o nosso sangue consegue melhorar a vida sexual e a saúde.

    — Tenho uma saúde de ferro — disse‑lhe, com toda a honestidade. — E não tenho propriamente uma vida sexual. Faz o que quiseres com ele.

    — Poderias vendê‑lo — sugeriu, mas achei que o fez apenas para ver o que eu diria.

    — Nem sequer lhe toco — disse, insultada.

    — És diferente — disse. — Tu és o quê? — Pareceu conferir uma lista mental de possibilidades pela forma como me olhava. Para minha satisfação, não consegui ouvir nada.

    — Sou a Sookie Stackhouse e sou uma empregada de bar — disse‑lhe. — Como te chamas? — Achei que podia perguntar aquilo sem ser atrevida.

    — Bill — respondeu.

    Não consegui impedir uma gargalhada.

    — O vampiro Bill! — disse. — Achei que pudesses ser Antoine, Basil ou Langford! Bill! — Há muito tempo que não me ria assim. — Até à vista, Bill. Tenho de voltar para o trabalho. — Conseguia sentir o sorriso tenso regressar aos meus lábios quando pensei no Merlotte’s. Pus a mão no ombro de Bill e ergui‑me. Senti que estava rígido e endireitei‑me tão rapidamente que quase cambaleei. Examinei as meias para me certificar de que estavam no sítio e procurei mazelas na farda resultantes do confronto com as Ratazanas. Sacudi o pó do rabo e acenei a Bill, iniciando a caminhada através do parque de estacionamento.

    Fora uma noite estimulante, com muita coisa em que pensar. Reflectindo no assunto, sentia que o sorriso que esboçava era perfeitamente justificado.

    Mas Jason ficaria muito irritado quando soubesse da corrente.

 

    Nessa noite, depois do trabalho, regressei a casa, cerca de seis quilómetros a sul do bar. Jason partira (e DeeAnne também) quando regressei e isso fora outro elemento positivo. Passava a noite em revista quando cheguei a casa da minha avó, onde vivia. Ficava imediatamente antes do cemitério de Tall Pines que, por sua vez, se situava junto a uma estrada secundária de dois sentidos. Foi o meu tetravô que construiu a casa e gostava de privacidade. Para chegar lá, era necessário sair da estrada e passar por uma zona arborizada até à clareira em que se situava a casa.

    Não é certamente nenhum monumento histórico, já que a maioria das partes mais antigas foram arrancadas e substituídas ao longo dos anos e, obviamente, tem electricidade, canalização e isolamento, todas essas comodidades modernas. Mas mantém o telhado de zinco que reflecte a luz nos dias soalheiros. Quando o telhado precisou de ser substituído, quis instalar telhas comuns, mas a minha avó não concordou. Apesar de ser eu a pagar, a casa é dela e o zinco manteve‑se.

    Mais ou menos histórica, vivi nesta casa desde os meus sete anos e visitava‑a com frequência antes disso porque gostava muito dela. Era uma grande e velha casa de família, demasiado grande apenas para a avó e para mim. Tinha uma fachada ampla, antecedida por um alpendre coberto e estava pintada de branco, de acordo com as convicções tradicionalistas da minha avó. Atravessei a grande sala de estar, decorada com mobiliário velho remendado para servir as nossas necessidades, alcançando o corredor e percorrendo‑o até ao primeiro quarto à esquerda, o maior de todos.

    Adele Hale Stackhouse, a minha avó, estava recostada na sua cama alta, com uma torre de almofadas por trás dos ombros magros. Vestia uma camisa de noite de algodão com mangas longas, mesmo com o ar quente daquela noite de Primavera. Tinha o candeeiro da mesa‑de‑cabeceira ligado e um livro aberto no colo.

    — Olá — disse‑lhe.

    — Olá, querida.

    A minha avó é muito pequena e muito velha, mas o cabelo continua espesso e tão branco que quase adquire uma muito ligeira tonalidade esverdeada. Prende‑o junto ao pescoço durante o dia, mas, à noite, solta‑o ou faz uma trança. Olhei a capa do livro.

    — Outra vez a ler a Danielle Steel?

    — Esta mulher sabe como contar uma história. — Os maiores prazeres na sua vida eram ler livros de Danielle Steele, ver as suas telenovelas (a que chamava «histórias») e participar em reuniões da miríade de clubes a que parecera ter pertencido durante toda a sua vida adulta. Os seus preferidos eram os Descendentes dos Mortos Gloriosos e a Sociedade de Jardinagem de Bon Temps.

    — Consegues adivinhar o que aconteceu hoje? — perguntei.

    — O que foi? Tens um encontro?

    — Não — respondi, esforçando‑me por manter o sorriso. — Um vampiro veio ao bar.

    — Oh! Tinha caninos aguçados?

    Vira‑os reflectindo a luz dos candeeiros do parque de estacionamento enquanto as Ratazanas o drenavam, mas não era necessário descrever‑lhos.

    — Claro. Mas estavam retraídos.

    — Um vampiro em Bon Temps. — Notava‑se que estava agradada. — Mordeu alguém no bar?

    — Claro que não, avó! Sentou‑se e bebeu um copo de vinho tinto. Bom… pediu‑o, mas não bebeu. Acho que só queria companhia.

    — Onde será que ele dorme?

    — Duvido que o partilhasse com alguém.

    — Não — disse, depois de pensar por um momento. — Não me parece que partilhasse. Gostaste dele?

    Ali estava uma pergunta complicada. Pensei antes de responder.

    — Não sei. Mas era muito interessante — disse, com cautela.

    — Gostava muito de o conhecer. — Não me surpreendia que dissesse isto porque gostava de novidades quase tanto como eu. Não pensava como aqueles reaccionários que determinaram logo à partida que os vampiros eram malditos. — Mas é melhor ir dormir. Estava à espera que chegasses antes de apagar a luz.

    Debrucei‑me para a beijar e disse:

    — Boa noite.

    Fechei a porta até meio quando saí e ouvi‑a desligar o candeeiro. Tina, a minha gata, aproximou‑se do sítio onde deveria estar a dormir e roçou‑se nas minhas pernas. Peguei‑lhe e acariciei‑a durante um momento antes de a levar até à rua, onde passaria a noite. Olhei o relógio. Eram quase duas da manhã e a minha cama chamava‑me.

    O meu quarto ficava à frente do da avó, do outro lado do corredor. Quando lá dormi pela primeira vez, depois da morte dos meus pais, a minha avó trouxe a minha mobília da casa deles para me ambientar melhor. E ali continuava. A cama de solteiro, a mesa e o espelho em madeira pintada de branco, a pequena cómoda.

    Apaguei a luz e fechei a porta antes de começar a despir‑me. Tinha pelo menos cinco pares de calções pretos e muitas camisolas de manga curta brancas porque estas se manchavam com facilidade. E o número de pares de meias brancas enrolados numa gaveta era impossível de determinar. Não precisaria de lavar roupa naquela noite. Estava demasiado cansada para um duche. Escovei os dentes e limpei a maquilhagem da cara, aplicando hidratante e soltando o cabelo.

    Enfiei‑me na cama com a minha camisola preferida do Rato Mickey, que me chegava quase aos joelhos. Voltei‑me para o lado, como sempre fazia, e apreciei o silêncio do quarto. A maior parte dos cérebros desligava‑se durante a noite e a vibração desaparecia. Deixava de ser necessário repelir intrusões. Com aquela paz, podia pensar apenas nos olhos escuros do vampiro antes de a exaustão trazer um sono profundo.

 

    À hora de almoço no dia seguinte estava sentada na minha cadeira reclinável em alumínio no quintal da frente, deixando que o sol me bronzeasse a pele. Vestia o meu biquíni preferido e agradava‑me muito que estivesse um pouco mais folgado do que no Verão anterior.

    Foi então que ouvi um carro subir a estrada e a carrinha preta de Jason com a decoração azul e rosa parou a um metro dos meus pés.

    Jason desceu (esqueci‑me de referir que a carrinha tem daqueles pneus altos) e caminhou até junto de mim. Vestia a roupa de trabalho habitual, camisa e calças caqui, com a faca embainhada presa ao cinto, como sucedia com a maior parte dos trabalhadores rodoviários do condado. Percebi que estava irritado pela forma como se movia.

    Pus os óculos escuros.

    — Porque não me disseste que espancaste os Rattray ontem à noite? — Deixou‑se cair sobre a cadeira de jardim a meu lado. — Onde está a avó? — perguntou, fora de tempo.

    — A pendurar a roupa — respondi. Usava a máquina de secar quando necessário, mas agradava‑lhe pendurar as roupas molhadas ao sol. Obviamente, o arame da roupa ficava no quintal dos fundos, o local onde deveria estar. — E também faz o almoço. Bife grelhado com as batatas‑doces e o feijão‑verde que semeou no ano passado — acrescentei, sabendo que isso o distrairia um pouco. Esperei que a avó ficasse nas traseiras. Não queria que ouvisse aquela conversa. — Fala baixo — disse‑lhe.

    — O Rene Lenier mal podia esperar que chegasse ao trabalho hoje de manhã para me contar tudo. Foi à caravana dos Rattray para comprar erva ontem à noite e Denise parecia capaz de matar alguém. O Rene diz que escapou por pouco, tal era a fúria. Teve de a ajudar a levar Mack para dentro da caravana e, depois, levaram‑no ao hospital em Monroe. — Jason olhou‑me com ar de reprovação.

    — O Rene contou‑te que o Mack me atacou com uma faca? — perguntei, decidindo que passar à ofensiva seria a melhor forma de lidar com a situação. Conseguia perceber que o desagrado de Jason se devia sobretudo ao facto de ter sabido por terceiros.

    — Se a Denise falou disso ao Rene, ele não me disse nada — disse, lentamente, e vi a raiva alterar‑lhe a face vistosa. — Atacou‑te com uma faca?

    — E tive de me defender — continuei, como se fosse uma questão simples. — Além disso, ele ficou com a tua corrente. — Era a verdade, ainda que um pouco manipulada. — Fui dizer‑te — continuei —, mas, quando voltei ao bar, tinhas ido embora com a DeeAnne e, como estava bem, achei que não valeria a pena procurar‑te. Sabia que te sentirias obrigado a procurá‑lo se te falasse da faca — acrescentei, com diplomacia. Havia muita verdade naquela afirmação. Jason adorava uma boa zaragata.

    — E que fazias tu com eles afinal? — perguntou, mas estava mais tranquilo e eu sabia que ele começava a aceitar.

    — Sabias que, além de venderem droga, as Ratazanas drenam vampiros?

    Agora estava fascinado.

    — Não. E então?

    — Um dos meus clientes ontem à noite era um vampiro e estavam a drená‑lo no parque de estacionamento do Merlotte’s! Tinha de fazer alguma coisa.

    — Há um vampiro em Bon Temps?

    — Sim. Mesmo que não queiras um vampiro como melhor amigo, não podes deixar que lixo como as Ratazanas o drenem. Não é o mesmo que tirar a gasolina de um carro. E tê‑lo‑iam deixado na floresta para morrer. — Apesar de não terem partilhado comigo as suas intenções, era esse o meu palpite. Mesmo que o cobrissem para sobreviver até ao nascer do sol, um vampiro drenado levava pelo menos vinte anos a recuperar. Pelo menos, foi isso que disseram na Oprah. E só se houver outro vampiro a cuidar dele.

    — O vampiro estava no bar enquanto lá estive? — perguntou Jason, espantado.

    — Sim. O tipo de cabelo escuro sentado com as Ratazanas.

    A minha alcunha para os Rattray fez Jason sorrir. Mas ainda não estava disposto a passar à frente da noite anterior.

    — Como soubeste que era um vampiro? — perguntou, mas, quando me olhou, percebi que preferia ter ficado calado.

    — Soube — disse, com a minha voz mais neutra.

    — Claro. — E partilhámos um diálogo completo sem palavras.

    — Homulka não tem um vampiro — disse Jason, pensativo. Inclinou a cara para apanhar sol e soube que pisávamos terreno perigoso.

    — É verdade — concordei.

    Homulka era a cidade que Bon Temps adorava odiar. Há inúmeras gerações que éramos rivais no futebol americano, no basquetebol e na importância histórica.

    — Nem Roedale — disse a avó atrás de nós, fazendo‑nos saltar aos dois. Reconheço a Jason o mérito de abraçar a avó de cada vez que a vê.

    — Avó, tem comida que chegue para mim?

    — Para ti e para mais dois iguais — respondeu, sorrindo‑lhe. Conhecia os seus defeitos (e também os meus), mas amava‑o. — Falava ao telefone com a Everlee Mason. Contou‑me que passaste a noite com a DeeAnne.

    — Bolas. Não posso fazer nada nesta cidade sem ser apanhado — disse Jason, fingindo‑se irritado.

    — Essa DeeAnne — disse a avó em tom de aviso quando começámos a dirigir‑nos para casa — já ficou grávida pelo menos uma vez. Toma cuidado para não lhe acontecer o mesmo contigo ou acabarás a pagar‑lhe para o resto da vida. Ainda que talvez seja essa a única forma de ter netos!

    A comida esperava‑nos sobre a mesa e, depois de Jason pendurar o chapéu, sentámo‑nos e demos graças. A avó e Jason começaram a trocar mexericos (apesar de preferirem chamar‑lhe «pôr a conversa em dia») sobre as pessoas da nossa pequena cidade e do condado circundante. O meu irmão trabalhava para o estado como supervisor de equipas de construção e reparação de estradas. Parecia‑me que o dia de Jason consistia em guiar uma carrinha do estado, picando o ponto e guiando a sua carrinha própria durante toda a noite. Rene fazia parte de uma das equipas a cargo de Jason e tinham andado juntos no liceu. Passavam muito tempo com Hoyt Fortenberry. 

    — Sookie, tive de substituir o esquentador em casa — disse Jason, subitamente. Vivia na casa que pertenceu aos nossos pais, onde vivíamos quando morreram numa inundação. Passámos a viver com a avó depois disso, mas, quando Jason acabou os seus dois anos de universidade e foi trabalhar para o estado, mudou‑se para a velha casa, mesmo que, oficialmente, metade me pertença.

    — Precisas de dinheiro? — perguntei.

    — Não. Está tudo bem.

    Ambos trabalhávamos, mas recebíamos dinheiro adicional de um fundo estabelecido quando se descobriu um poço de petróleo na propriedade dos nossos pais. O poço esgotou‑se pouco depois, mas os nossos pais e a avó certificaram‑se de que o dinheiro seria investido. Esse rendimento salvou‑nos aos dois de muitas dificuldades. Não sei como a avó teria conseguido criar‑nos de outra forma. Ela estava determinada a não vender o terreno, mas o seu rendimento provinha quase exclusivamente da segurança social. Era uma razão para eu não arranjar um apartamento. Se comprasse comida enquanto vivia com ela, parecer‑lhe‑ia razoável, mas se comprasse comida e lha trouxesse, deixando‑a na mesa antes de ir para uma casa própria, passaria a ser caridade e ela ficaria furiosa.

    — Que tipo de esquentador compraste? — perguntei, apenas para mostrar interesse.

    Estava ansioso por me dizer. Jason tinha a mania dos electrodomésticos e queria descrever em pormenor a sua busca comparativa por um novo esquentador. Ouvi com a atenção que consegui reunir.

    Até que se interrompeu a si próprio.

    — Sook, lembras‑te da Maudette Pickens?

    — Claro — respondi, surpreendida. — Acabámos o liceu no mesmo ano.

    — Alguém a matou no apartamento ontem à noite.

    Aquilo chocou‑me a mim e à avó.

    — Quando? — perguntou ela, intrigada por ainda não saber do assunto.

    — Encontraram‑na hoje de manhã no quarto. O patrão tentou ligar‑lhe para descobrir porque não tinha vindo trabalhar ontem e hoje e ninguém atendeu. Foi até lá e pediu ao proprietário para abrir a porta. O apartamento dela é à frente do de DeeAnne. — Bon Temps tinha apenas um complexo de apartamentos legítimo, três edifícios de dois andares dispostos em U. Sabíamos exactamente a que se referia.

    — Mataram‑na aí? — Senti‑me mal. Lembrava‑me muito bem de Maudette. Tinha um queixo saliente e um rabo quadrado, cabelo preto bonito e ombros largos. Subsistia sem grandes ambições ou inteligência. Não estava segura, mas parecia‑me que trabalhara no Grabbit Kwik, uma mistura de estação de serviço com loja de conveniência.

    — Sim. Acho que trabalhava lá há pelo menos um ano — confirmou Jason.

    — Como foi? — A avó tinha aquela expressão receosa e incerta com que as pessoas simpáticas pedem más notícias.

    — Tinha marcas de vampiro na… hmm… na parte interior das coxas — disse o meu irmão, olhando para o prato. — Mas não foi isso que a matou. Foi estrangulada. A DeeAnne contou‑me que a Maudette gostava de ir àquele bar de vampiros em Shreveport quando tinha uns dias de folga. Talvez isso explique as marcas. Pode não ter sido o vampiro da Sookie.

    — A Maudette era vampirófila? — Senti‑me estranha ao imaginar a lenta e anafada Maudette dentro dos bizarros vestidos pretos que as vampirófilas costumavam usar.

    — Era o quê? — perguntou a avó. Devia ter perdido o episódio da Sally Jessy em que o fenómeno foi explorado.

    — São homens e mulheres que convivem com vampiros e gostam de ser mordidos. Fãs de vampiros. Acho que não duram muito tempo porque querem ser mordidos com demasiada avidez e, mais cedo ou mais tarde, há uma dentada que acaba por ir longe demais.

    — Mas não foi uma dentada a matar a Maudette. — A avó queria certificar‑se de que tinha compreendido bem.

    — Não. Foi estrangulada. — Jason terminava o almoço.

    — Não abasteces a carrinha no Grabbit? — perguntei eu.

    — Claro. Muitos o fazem.

    — E não passaste algum tempo com a Maudette? — perguntou a avó.

    — Sim. De certa forma — respondeu Jason com cautela.

    Interpretei aquilo como confirmação de que dormia com Maudette quando não conseguia encontrar ninguém melhor.

    — Espero que o xerife não queira falar contigo — disse a avó, abanando a cabeça como se o gesto conseguisse torná‑lo menos provável.

    — O quê? — Jason ficou vermelho e pareceu assumir uma postura defensiva.

    — Vias a Maudette todos os dias quando ias abastecer‑te de gasolina, namoravas com ela de certa forma e ela aparece morta num apartamento que conheces bem — resumi‑lhe a situação. Não era muito, mas era alguma coisa e havia muito poucos homicídios misteriosos em Bon Temps, fazendo‑me pensar que todas as hipóteses seriam ponderadas na investigação daquele.

    — Não sou o único a cumprir esses requisitos. Há muitos outros tipos a meter gasolina no mesmo sítio e todos conheciam a Maudette.

    — Sim, mas em que sentido? — perguntou a avó, sem rodeios. — Não era uma prostituta, pois não? Terá falado a alguém sobre os homens na sua vida.

    — Gostava de se divertir. Mas não era profissional. — Era simpático de Jason defender Maudette, levando em consideração o que conhecia da sua personalidade egoísta. Comecei a ter uma opinião um pouco melhor do meu irmão mais velho. — Acho que se sentia sozinha — acrescentou.

    Jason olhou‑nos a ambas e viu que estávamos surpresas e comovidas.

    — Falando em prostitutas — disse, prontamente —, há uma em Monroe especializada em vampiros. Tem um tipo por perto com uma estaca para o caso de algum ir longe demais. Bebe sangue sintético para garantir abastecimento constante.

    Era uma mudança de assunto demasiado brusca. A avó e eu tentámos pensar numa pergunta que pudéssemos colocar que não fosse indecente.

    — Quanto será que cobra? — atrevi‑me. E, quando Jason partilhou a quantia que ouvira referir, ficámos as duas chocadas.

    Ultrapassado o assunto do homicídio de Maudette, o almoço decorreu como era habitual, com Jason olhando o relógio e exclamando que precisava de se ir embora quando chegou a altura de lavar os pratos.

    Mas descobri que a mente da avó continuava povoada por vampiros. Veio ao meu quarto mais tarde, quando eu aplicava a maquilhagem para ir trabalhar.

    — Que idade achas que tem o vampiro que conheceste?

    — Não faço ideia, avó. — Aplicava o rímel, abrindo muito os olhos e tentando manter‑me imóvel para não espetar um olho. Isto alterou‑me a voz, fazendo‑me parecer alguém que prestava provas para um filme de terror.

    — Achas que… poderá lembrar‑se da guerra?

    Não precisei de perguntar a que guerra se referia. Afinal, a avó era membro destacado dos Descendentes dos Mortos Gloriosos.

    — É possível — respondi, voltando a cara para me certificar de que o rouge estava igualmente distribuído dos dois lados.

    — Achas que aceitará vir falar connosco sobre o assunto? Poderíamos organizar uma reunião especial.

    — De noite — recordei.

    — Ah. Sim, teria de ser de noite. — Os Descendentes costumavam reunir‑se ao meio‑dia na biblioteca, trazendo o almoço de casa.

    Pensei no assunto. Seria indelicado sugerir ao vampiro que deveria falar no clube da minha avó porque o salvara dos drenadores, mas talvez se oferecesse ao perceber a dica. Não me agradava, mas fá‑lo‑ia pela avó.

    — Pergunto‑lhe da próxima vez que vier ao bar — prometi.

    — No mínimo, podia vir falar comigo e talvez pudesse gravar as suas memórias — disse ela. Quase conseguia ouvir o que lhe passava pela cabeça, imaginando o quanto aquilo lhe agradaria. — Seria muito interessante para os outros membros — disse, mantendo‑se comedida.

    Consegui suprimir uma gargalhada.

    — Vou sugerir‑lho — disse. — Veremos.

    Quando saí, era óbvio que a avó contava com os ovos dentro da galinha.

 

    Não esperei que Rene Lenier contasse a história do parque de estacionamento ao Sam. Ele tinha estado muito ocupado. Quando cheguei ao trabalho nessa tarde, presumi que a agitação que sentia no ar se devesse ao homicídio de Maudette. Estava enganada.

    Sam empurrou‑me para o armazém logo que cheguei. Estava furioso e não tentava escondê‑lo.

    Era a primeira vez que me falava naquele tom e não tardei a estar prestes a chorar.

    — Se achas que um cliente corre perigo, apenas tens que dizer‑me e serei eu a lidar com o assunto. Não tu — repetia‑o pela sexta vez quando percebi finalmente que Sam receara pela minha segurança.

    Ouvi‑o antes de lhe bloquear os pensamentos. Ler a mente do patrão pode ser desastroso.

    Nunca me tinha ocorrido pedir ajuda a Sam ou a qualquer outra pessoa.

    — Quando te parecer que alguém está a ser agredido no parque de estacionamento, deves chamar a polícia e não lidar com o assunto sozinha — bradou. A sua pele clara, sempre corada, estava mais vermelha do que o habitual, e o cabelo louro parecia não ter sido penteado.

    — Está bem — disse, tentando manter a voz estável e abrindo muito os olhos para travar as lágrimas. — Vais despedir‑me?

    — Não! Não! — exclamou, parecendo ainda mais irritado. — Não te quero perder! — Segurou‑me pelos ombros e abanou‑me um pouco. A seguir, olhou‑me fixamente com aqueles olhos azuis intensos e senti o calor que dele emanava. O toque acelera a minha deficiência, tornando imperativo que ouça a pessoa que me toca. Olhei‑o nos olhos por um longo momento antes de me recompor, dando um passo atrás quando baixou as mãos.

    Dei meia volta e saí do armazém, assustada.

    Descobrira algumas coisas desconcertantes. Sam desejava‑me e não conseguia ouvir os seus pensamentos com a mesma clareza dos pensamentos dos outros. Captara ondas de sentimento, mas nenhum pensamento. Assemelhava‑se mais a usar um daqueles anéis que mudam de cor conforme a posição em que observam, do que a receber um fax.

    E que fiz eu com essas informações?

    Absolutamente nada.

    Nunca vira Sam como potencial companheiro de cama, pelo menos não para mim, por várias razões. Mas a mais simples era o facto de nunca olhar ninguém dessa forma. Não por não ter hormonas (tenho‑as em grande número), mas são constantemente reprimidas porque, para mim, o sexo é um desastre. Conseguem imaginar saber tudo o que o vosso parceiro pensa? Pois. Coisas como: «Bolas, olhem este sinal… o rabo dela é um pouco grande… gostava que se movesse um pouco para a direita… porque não percebe a indirecta e…?» Dá para perceber. Acreditem quando vos digo que é tenebroso a nível emocional. E, durante o sexo, não há forma de manter as defesas elevadas.

    Além disso, gosto de Sam como patrão e gosto do meu emprego, que me permite sair e me mantém activa e a ganhar dinheiro, impedindo‑me de me transformar na reclusa que a minha avó receia. Trabalhar num escritório é difícil para mim e a universidade tornou‑se impossível devido aos níveis de concentração exigidos. Esgotava‑me.

    Tentaria acalmar o desejo que sentia vindo dele. Não se tinha declarado nem me tinha atirado ao chão do armazém. Captara os seus sentimentos e podia ignorá‑los se quisesse. Compreendia a delicadeza do assunto e questionava‑me se Sam me teria tocado de propósito, como se soubesse aquilo que eu era.

    Tive o cuidado de não ficar sozinha com ele, mas tenho de admitir que, nessa noite, me senti muito abalada.

 

    As duas noites seguintes foram melhores. Voltámos à nossa relação confortável. Senti‑me aliviada. Senti‑me desiludida. E também me senti esgotada porque a morte de Maudette desencadeou um aumento da clientela do Merlotte’s. Circulavam vários tipos de rumores por Bon Temps e uma equipa de reportagem de Shreveport fez uma reportagem breve sobre o homicídio sinistro de Maudette Pickens. Apesar de não ter ido ao funeral, a minha avó foi e contou‑me que a igreja estava apinhada. A pobre Maudette anafada, com as suas coxas mordidas, era mais interessante morta do que alguma vez fora em vida.

    Estava quase a ter dois dias de folga e preocupou‑me não conseguir contactar Bill, o vampiro. Precisava de lhe transmitir o pedido da avó. Não voltara ao bar e começava a questionar‑me se ele o faria.

    Mack e Denise também não tinham voltado, mas Rene Lenier e Hoyt Fortenberry certificaram‑se de que eu soubesse que tinham ameaçado fazer‑me coisas terríveis. Não posso dizer que me tenha sentido grandemente alarmada. Lixo criminoso como as Ratazanas vagueava pelas estradas e parques de caravanas da América, não sendo suficientemente inteligentes para se fixarem num local nem para adoptar formas de vida produtivas. Não deixavam qualquer marca positiva no mundo e achava‑os insignificantes. Ignorei os avisos de Rene.

    Mas ele gostava de os transmitir. Rene Lenier era baixo como Sam, mas, enquanto Sam era louro e corado, Rene era moreno e tinha a cabeça coberta de cabelo áspero e preto com alguns traços grisalhos. Vinha com frequência ao bar para um copo e para visitar Arlene porque (como gostava de contar) era a sua ex‑mulher preferida. Tivera três. Hoyt Fortenberry era mais discreto que Rene. Não era louro nem moreno, nem alto nem baixo. Parecia sempre bem‑disposto e dava gorjetas decentes. Admirava o meu irmão muito além do que, na minha opinião, Jason merecia.

    Fiquei feliz por Rene e Hoyt não estarem presentes na noite em que o vampiro regressou.

    Sentou‑se à mesma mesa.

    Agora que o tinha à minha frente, senti‑me algo envergonhada. Percebi que esquecera o brilho quase imperceptível da sua pele. Exagerara a sua altura nas minhas memórias e também a definição das linhas da boca.

    — Que queres beber? — perguntei.

    Olhou‑me. Esquecera também a profundidade do seu olhar. Não sorriu nem pestanejou. Permaneceu imóvel. Pela segunda vez, deixei‑me acalmar pelo seu silêncio. Quando baixei a guarda, consegui sentir a expressão suavizar. Era tão bom como ser massajada (suponho).

    — Tu és o quê? — perguntou‑me. Era a segunda vez que tentava saber.

    — Sou uma empregada — disse, voltando a fingir não o ter compreendido. Conseguia sentir o sorriso a regressar à cara. A minha partícula de paz desaparecera.

    — Vinho tinto — pediu. E, se estava desiludido, não consegui percebê‑lo pela voz.

    — Claro — disse. — O sangue sintético deve chegar amanhã. Posso falar contigo depois do trabalho Tenho um favor a pedir‑te.

    — Com certeza. Estou em dívida. — E não parecia agradar‑lhe.

    — Não é um favor para mim! — Também eu começava a ficar irritada. — É para a minha avó. Se estiveres acordado quando sair do trabalho… bom… acho que estarás acordado à uma e meia, importas‑te de vir ter comigo à porta dos funcionários nas traseiras do bar?

    — Indiquei‑a com a cabeça e senti o rabo‑de‑cavalo dançar‑me sobre os ombros. Os olhos dele seguiram o movimento do meu cabelo.

    — Com todo o gosto.

    Não percebi se aquilo era uma manifestação da cortesia que a avó insistia ser o padrão no passado ou se estava apenas a gozar comigo.

    Resisti à tentação de lhe deitar a língua de fora. Voltei‑lhe as costas e caminhei até ao balcão. Quando lhe trouxe o vinho, deu‑me uma gorjeta de vinte por cento. Pouco depois, olhei para a sua mesa, descobrindo que tinha desaparecido. Eu pensava se ele iria ou não cumprir a promessa.

    Arlene e Dawn saíram antes que estivesse pronta. Sobretudo porque os suportes de guardanapos da minha zona estavam parcialmente vazios. Quando fui buscar a mala ao armário no gabinete do Sam, onde a guardo enquanto trabalho, disse adeus ao patrão. Ouvia‑o na casa de banho dos homens, provavelmente tentando arranjar uma sanita com fugas. Entrei na casa de banho das senhoras por um segundo para conferir o estado do cabelo e da maquilhagem.

    Quando saí, reparei que Sam já tinha desligado as luzes do parque de estacionamento dos clientes. E era apenas a luz de segurança no poste de electricidade à frente da sua caravana que iluminava o parque vazio dos empregados. Para diversão de Arlene e Dawn, Sam criara um jardim à frente da caravana, plantando buxo, e era constantemente provocado pelo aprumo da sua sebe.

    Eu achava que era bonito.

    Como sempre, a carrinha de Sam estava estacionada junto à caravana e o meu carro era o único no parque.

    Estiquei‑me, olhei para um lado e para o outro. Não havia sinais de Bill. Surpreendeu‑me que me sentisse tão desiludida. Esperara realmente que fosse cortês, mesmo que não o sentisse no coração (teria coração?).

    Sorrindo, pensei que talvez saltasse de uma árvore ou surgisse do nada com um estrondo! À minha frente, enrolado numa capa preta com forro vermelho. Mas nada aconteceu. Por isso, fui até ao carro.

    Esperara uma surpresa, mas não aquela.

    Mack Rattray ergueu‑se por trás do meu carro e, com um passo, ficou suficientemente próximo para me atingir no queixo. Ele não conteve a força e caí sobre a gravilha como um saco de cimento. Gritei ao cair, mas o chão roubou‑me o fôlego e alguns pedaços de pele. Fiquei calada, sem fôlego e indefesa. A seguir, vi Denise recuando a bota pesada e consegui apenas enrolar‑me antes de os Rattray começarem a pontapear‑me.

    A dor foi imediata, intensa e implacável. Lancei instintivamente os braços sobre a cara, absorvendo os golpes com os antebraços, pernas e costas.

    Durante os primeiros segundos, acho que acreditei que parariam, insultando‑me e ameaçando‑me antes de partirem. Mas recordo o momento exacto em que percebi que queriam matar‑me.

    Podia ficar ali deitada, aceitando passivamente o espancamento, mas não deixaria que me matassem.

    Segurei a perna que se aproximou em seguida com toda a força. Tentava mordê‑la, esperando deixar pelo menos uma marca. Nem sequer sabia a quem pertencia.

    Então, por trás de mim, ouvi um rosnado. Pensei que tinham trazido um cão. O rosnado era decididamente hostil. Se tivesse tido tempo para reagir devidamente, o cabelo da nuca ter‑se‑ia arrepiado. Senti mais um pontapé nas costas e o espancamento parou.

    O último pontapé provocara um efeito terrível. Conseguia ouvir a minha respiração dificultada e um estranho ruído gorgolejante que parecia vir dos pulmões.

    — Que raio é aquilo? — perguntou Mack Rattray, parecendo assustado.

    Voltei a ouvir o rosnado atrás de mim. E, de outra direcção, ouvi uma espécie de rugido. Denise começou a gritar e Mack praguejava. Denise afastou a perna das minhas mãos, que tinham perdido a força que lhes restava. Os meus braços caíram ao chão. Pareciam estar fora do meu controlo. Apesar de ter a visão enevoada, conseguia ver que o braço direito estava partido. Sentia a cara húmida. Assustava‑me continuar a avaliar os meus ferimentos.

    Mack começou a gritar, juntando‑se a Denise e parecia haver um turbilhão de actividade em meu redor, mas não me conseguia mover. Via apenas o braço partido, os joelhos esfolados e a escuridão por baixo do carro.

    Algum tempo depois, houve silêncio. Atrás de mim, um cão gania. Um nariz frio tocou‑me a orelha e uma língua quente lambeu‑a.Tentei erguer a mão para acariciar o animal que me teria salvo a vida, mas não consegui. Ouvi‑‑me suspirar. Parecia vir de muito longe.

    Aceitando os factos, disse:

    — Estou a morrer.

    Começou a parecer‑me cada vez mais real. Os sapos e os grilos que cantavam a noite silenciaram‑se com toda a actividade e barulho no parque de estacionamento e a minha voz fraca ampliou‑se na escuridão. Estranhamente, ouvi duas vozes depois disso.

    Em seguida, dois joelhos cobertos de ganga azul ensanguentada entraram no meu campo visual. O vampiro Bill debruçou‑se e consegui ver‑lhe a cara. Tinha a boca manchada de sangue e os caninos expostos, brilhando na sua brancura contra o lábio inferior. Tentei sorrir‑lhe, mas a cara não me obedecia.

    — Vou pegar‑te ao colo — disse Bill. Parecia calmo.

    — Se o fizeres, morro — murmurei.

    Olhou‑me com atenção.

    — Ainda não — disse, finda a avaliação. Estranhamente, aquilo fez‑me sentir melhor. Pensei que seria impossível determinar quantos ferimentos tinha visto durante a vida. — Isto vai doer — advertiu‑me.

    Era difícil imaginar algo que não doesse.

    Os seus braços deslizaram por baixo de mim, não me dando tempo para sentir medo. Gritei, mas sem conseguir grande efeito.

    — Rápido — disse uma voz urgente.

    — Vamos para a floresta, para onde não nos consigam ver — disse Bill, aninhando o meu corpo contra si, como se não pesasse nada.

     Iria enterrar‑me, longe da vista? Depois de me ter salvo das Ratazanas? Quase não me importava.

    O alívio foi pouco quando me deitou sobre um tapete de agulhas de pinheiro na escuridão da floresta. À distância, conseguia ver o brilho do parque de estacionamento. Senti o sangue pingar‑me do cabelo, uma dor no braço partido e a agonia provocada pelos golpes, mas o mais assustador era o que não sentia.

    Não sentia as pernas.

    Sentia a barriga cheia e pesada. A expressão «hemorragia interna» alojou‑se no meu pensamento.

    — Morrerás se não fizeres o que te digo — disse‑me Bill.

    — Desculpa, mas não quero ser vampira — disse, com voz débil.

    — Não serás — insistiu, com delicadeza. — Vais curar‑te. Rapidamente. Eu tenho a cura. Mas terás de a aceitar.

    — Então cura‑me — sussurrei. — Estou a ir‑me. — Sentia a escuridão puxar‑me.

    No pequeno recanto da minha mente que ainda recebia sinais do mundo, ouvi Bill grunhir como se tivesse sido ferido. A seguir, alguma coisa foi pressionada contra a minha boca.

    — Bebe — disse.

    Tentei colocar a língua de fora e consegui. Bill sangrava e apertava o pulso para forçar o fluxo de sangue para a minha boca. Lutei contra o vómito. Mas queria viver. Forcei‑me a engolir. E a engolir novamente.

    Subitamente, o sangue passou a saber bem. Salgado. A essência da vida. O meu braço intacto ergueu‑se e a mão rodeou o pulso do vampiro, prendendo‑o à minha boca. Sentia‑me melhor com cada gole. E, após um minuto, deixei‑me adormecer.

    Quando acordei, continuava na floresta, deitada no chão. Alguém estava deitado a meu lado. Era o vampiro. Conseguia perceber o seu brilho. Conseguia sentir a sua língua movendo‑se sobre a minha cabeça. Lambia‑me a ferida. Não podia repreendê‑lo.

    — O meu sabor é diferente do das outras pessoas? — perguntei.

    — Sim — disse, com voz grave. — Tu és o quê?

    Era a terceira vez que me perguntava. A minha avó costumava dizer que à terceira era de vez.

    — Ei, não estou morta — disse. Recordei subitamente que esperara o fim. Abanei o braço, o que fora partido. Estava fraco, mas já não se dobrava por onde não devia. Conseguia sentir as pernas e também as abanei. Tentei inspirar e agradou‑me que o resultado fosse apenas uma dor ligeira. Esforcei‑me por me sentar. Foi difícil, mas não impossível. Era como o primeiro dia sem febre depois da pneumonia que me afectou em criança. Sentia‑me frágil, mas eufórica. Sabia que sobrevivera a algo horrível.

    Antes de acabar de me endireitar, rodeou‑me com os braços e apertou‑me contra ele. Encostou‑se a uma árvore. Senti‑me muito confortável no seu colo, com a cabeça contra o peito dele.

    — Telepata. É isso que sou — disse. — Consigo ouvir os pensamentos dos outros.

    — Até os meus? — Parecia apenas curioso.

    — Não. É por isso que gosto tanto de ti — disse, flutuando num mar de bem‑estar em tons de rosa. Não via motivo para esconder o que pensava.

    Senti‑lhe o peito estremecer quando se riu. A gargalhada parecia algo enferrujada.

    — Não consigo ouvir nada teu — continuei, em tom encantado. — Não fazes ideia de como isso é tranquilizante. Depois de uma vida inteira de blá, blá, blá… não ouço nada.

    — Como consegues sair com homens? Com homens da tua idade, cujo único pensamento será certamente encontrar forma de te levar para a cama. 

    — Não consigo. É simples. E, francamente, acho que só pensam em levar as mulheres para a cama em qualquer idade. Não saio com ninguém. Todos acham que sou maluca porque não lhes consigo dizer a verdade. E a verdade é que todos aqueles pensamentos, todas aquelas mentes me deixam à beira da loucura. Tive alguns encontros quando comecei a trabalhar no bar com tipos que não me conheciam. Mas era sempre o mesmo. É impossível concentrar‑me em ficar confortável com um tipo ou em deixar‑me levar pelo momento quando consigo ouvi‑los pensar se pinto o cabelo, que o meu rabo não é giro ou a imaginar como serão as minhas mamas.

    Subitamente, sentia‑me muito mais alerta e percebi que revelava muito de mim a esta criatura.

    — Desculpa — disse. — Não queria maçar‑te com os meus problemas. Obrigada por me salvares das Ratazanas.

    — A culpa foi minha — disse. Consegui perceber que havia raiva por baixo da serenidade superficial da sua voz. — Se tivesse tido a cortesia de chegar a horas, não teria acontecido. Devia‑te algum do meu sangue. Devia‑te a cura.

    — Estão mortos? — Para meu embaraço, a voz falhou‑me quando fiz a pergunta.

    — Sim.

    Engoli em seco. Não sentia pena por o mundo ficar livre das Ratazanas. Mas tinha de enfrentar os factos. Não conseguia escapar à percepção de que estava sentada no colo de um assassino. No entanto, sentia‑me muito bem ali, envolvida nos seus braços.

    — Isto devia preocupar‑me, mas não é o que acontece — disse, sem pensar. Senti novamente aquele riso enferrujado.

    — Sookie, porque querias falar comigo hoje?

    Precisei de me concentrar. Apesar da recuperação milagrosa do espancamento, sentia‑me um pouco confusa.

    — A minha avó gostava muito de saber que idade tens — disse,com hesitação. Não sabia até que ponto o assunto seria pessoal para um vampiro. O vampiro em questão acariciava‑me as costas como se afagasse um gatinho.

    — Transformaram‑me num vampiro em 1870, quando era um humano de trinta anos.

    Olhei‑o. A sua face reluzente não tinha qualquer expressão e os seus olhos eram dois poços negros na escuridão da floresta.

    — Combateste na guerra?

    — Sim.

    — Receio que isto te vá enfurecer, mas ela ficaria tão feliz se pudesses falar um pouco ao seu clube sobre a guerra, sobre como foi na realidade.

    — Clube?

    — Pertence aos Descendentes dos Mortos Gloriosos.

    — Mortos gloriosos. — O tom de voz do vampiro era impossível de interpretar, mas conseguia perceber que não se sentia feliz.

    — Não seria necessário falares dos vermes, das infecções e da fome — disse. — Imaginam a guerra à sua maneira e, apesar de não serem estúpidos (viveram outras guerras), gostariam de saber mais sobre o modo de vida das pessoas da época, sobre fardas e movimento de tropas.

    — Sobre coisas limpas.

    Inspirei fundo.

    — Sim.

    — Far‑te‑ia feliz se o fizesse?

    — Que diferença faz? Faria a minha avó feliz e, já que estás em Bon Temps e pareces querer viver aqui, seria uma boa acção de relações públicas.

    — Far‑te‑ia feliz?

    Era difícil evitar‑lhe as perguntas.

    — Sim.

    — Então aceito.

    — A avó pede para comeres antes de vires — disse.

    Voltei a ouvir o riso, desta vez mais profundo.

    — Estou com grande vontade de a conhecer. Posso visitar‑te numa destas noites?

    — Ah. Claro. Amanhã é a minha última noite de trabalho e depois terei dois dias de folga. Quinta‑feira será uma boa noite. — Ergui o braço para olhar o relógio. Funcionava, mas o vidro estava coberto com sangue seco. — Que nojo — disse, molhando o dedo com saliva e limpando o vidro. Pressionei o botão que iluminava os ponteiros e surpreendeu‑me ver a hora.

    — É melhor ir para casa. Espero que a avó tenha adormecido.

    — Deve ficar preocupada por ficares sozinha até tão tarde — comentou Bill. O tom parecia reprovador. Talvez pensasse em Maudette? Por um momento, senti‑me profundamente insegura, pensando se Bill a teria realmente conhecido, se ela o teria convidado para casa. Mas rejeitei a ideia porque me recusava teimosamente a pensar na bizarra e terrível natureza da vida e morte de Maudette. Não queria que esse horror projectasse a sua sombra sobre a minha pequena felicidade.

    — Faz parte do trabalho — disse, secamente. — Não posso evitar. De qualquer forma, não trabalho todas as noites. Apenas quando posso.

    — Porquê? — O vampiro ajudou‑me a levantar e ergueu‑se sem qualquer dificuldade.

    — As gorjetas são melhores. O trabalho é mais duro. Não há tempo para pensar.

    — Mas a noite é mais perigosa — disse, novamente com tom reprovador.

    E deveria sabê‑lo.

    — Não fales como a minha avó — repreendi‑o. Estávamos quase no parque de estacionamento.

    — Sou mais velho do que a tua avó — recordou‑me. Aquilo pôs fim à conversa.

    Depois de sair da floresta, deixei‑me ficar a olhar. O parque de estacionamento estava tão sereno e imóvel como se nada tivesse acontecido ali, como se não tivesse escapado por pouco de ser espancada até à morte na gravilha apenas uma hora antes. Como se as Ratazanas não tivessem sofrido uma morte sangrenta.

    As luzes do bar e da caravana de Sam estavam apagadas.

    A gravilha estava húmida, mas não por causa do sangue.

    A minha mala estava pousada sobre o tejadilho do carro.

    — E o cão? — perguntei.

    Voltei‑me para o meu salvador.

    Já não estava lá.»