O Abraço da Noite

Saga dos Predadores da Noite nº3

Primeiro Capítulo

«    — SABES, Talon, matar um daemon sugador de almas sem uma boa luta é como sexo sem preliminares. Uma completa perda de tempo e, de facto… nada satisfatório.

    Talon rosnou o seu assentimento perante as palavras de Wulf, enquanto se sentavam numa mesa de canto no Café Du Monde, esperando o regresso da empregada com café preto de chicória e beignets. Na mão esquerda segurava uma antiga moeda saxónica, que fazia rolar entre os dedos enquanto perscrutava a rua escura à sua frente e via passar os turistas e os locais.

    Tendo banido a maior parte das suas emoções, quinhentos anos antes, só havia três coisas que Talon ainda se permitia gozar: mulheres dissolutas, café de chicória quente e os telefonemas de Wulf.

    Por essa ordem.

    Embora, para ser sincero, houvesse alturas em que a amizade de Wulf significara mais do que uma chávena de café.

    Essa noite, contudo, não era uma dessas alturas.

    Tinha acordado, logo depois do crepúsculo, descobrindo-se com níveis pateticamente baixos de cafeína e, embora a teoria afirmasse que os imortais não tinham vícios, não era algo em que apostasse.

    Mal tivera tempo para vestir um par de calças e o casaco de cabedal antes de partir em busca da deusa Cafeína.

    A fria noite de Nova Orleães estava incaracteristicamente calma. Não havia muitos turistas na rua, o que era estranho tão perto do Carnaval.

    Ainda assim, era a época alta dos daemon em Nova Orleães. Em breve os vampiros começariam a seguir os turistas e a alimentar-se deles como se estivessem num banquete.

    Por enquanto, contudo, Talon estava contente pela acalmia, já que lhe permitia lidar com a crise de Wulf e alimentar o único desejo que não podia esperar.

    — Falas como um verdadeiro nórdico — disse Talon para o telemóvel. — O que tu precisas, meu irmão, é de um salão de hidromel repleto de jovens empregadas e Vikings prontos a abrir caminho, lutando, até Valhalla.

    — A quem o dizes — concordou Wulf. — Sinto saudades dos bons velhos tempos, quando os daemon eram guerreiros treinados para o combate. Os que encontrei, esta noite, não sabiam nada de luta e estou farto da mentalidade de “a minha arma resolve tudo”.

    — Dispararam contra ti, outra vez?

    — Quatro vezes. Juro… quem me dera arranjar um daemon como o Desiderius. Adorava uma boa luta, ao menos uma vez.

    — Tem cuidado com o que desejas, podes recebê-lo.

    — Sim, eu sei. Mas, raios! Ao menos uma vez, não podem parar de fugir de nós e aprender a lutar como os seus antepassados? Sinto saudades da forma como as coisas eram.

    Talon ajeitou os óculos escuros Ray-Ban Predator, enquanto observava um grupo de mulheres que passava na rua próxima.

    Ora ali estava um desafio em que não se importava de enfiar as presas…

    Sob os lábios fechados, passou a língua sobre o longo dente canino esquerdo, enquanto observava uma bela mulher, loura, vestida de azul. Tinha um andar lento e sedutor que podia fazer com que até um homem de
quinhentos anos de idade se sentisse um rapazinho.

    Ele queria tanto um pedaço daquilo.

    Maldito Carnaval.

    Se não fosse a época do ano, estaria a desligar o telefone a Wulf e a correr atrás dela para saciar o seu principal desejo.

    Dever. Como tresandava.

    Suspirando, voltou de novo a atenção para a conversa.

    — Digo-te, aquilo de que tenho mais saudades é das Talpinas.

    — Quem são essas?

    Talon lançou um olhar ávido às mulheres que saíam, rapidamente, do seu campo de visão.

    — É verdade, já não são do teu tempo. Durante a maior parte da Idade das Trevas, tivemos um clã de Escudeiros cujo único propósito era atender às nossas necessidades carnais.

    Talon susteve a respiração com apreço, enquanto recordava as Talpinas e o conforto que elas outrora lhe tinham dado, bem como aos seus irmãos Predadores da Noite.

    — Meu, eram ótimas. Sabiam o que éramos e não tinham qualquer problema em dormir connosco. Diabos, os Escudeiros até lhes ensinavam as melhores formas de nos dar prazer.

    — O que lhes aconteceu?

    — Cerca de cem anos ou assim, antes de tu nasceres, um Predador da Noite cometeu o erro de se apaixonar pela sua Talpina. Para infelicidade dos restantes, ela não passou no teste de Ártemis. A deusa ficou tão furiosa que interveio e baniu as Talpinas, implementando a maravilhosa regra que dita que só podemos dormir uma vez com cada mulher. Para ajudar à festa, o Acheron criou a lei de que não podemos tocar nos nossos Escudeiros. Digo-te, ainda não viveste até teres tentado encontrar um engate de uma noite na Grã-Bretanha do século VII. Wulf fungou.

    — Para mim, isso nunca foi um problema.

    — Sim, eu sei. Invejo-te nesse aspeto. Enquanto nós temos de nos afastar das nossas amantes sob pena de trairmos a nossa existência, tu podes libertar-te sem medo.

    — Acredita em mim, Talon, não é tão bom como dizem. Tu vives sozinho por escolha. Fazes ideia de como é frustrante que ninguém se recorde de ti cinco minutos depois de teres saído do seu lado?

    Wulf soltou um suspiro longo e cansado.

    — A mãe do Christopher veio visitar-me três vezes, só na última semana, para poder conhecer a pessoa para quem ele trabalha. Já a conheço há quê? Trinta anos? E não nos esqueçamos daquela vez, há dezasseis anos, em que cheguei a casa e ela chamou a Polícia porque pensou que eu estava a assaltar a minha própria residência.

    Talon fez uma careta perante a dor na voz de Wulf. Recordava-lhe o porquê de não se permitir qualquer sensação para além do prazer físico.

    As emoções não tinham qualquer propósito na vida e ele estava muito melhor sem elas.

    — Lamento, irmãozinho — disse a Wulf. — Pelo menos tens-nos a nós, e ao teu Escudeiro, que somos capazes de nos lembrar de ti.

    — Sim, eu sei. Graças aos deuses pela tecnologia moderna. Caso contrário, enlouqueceria.

    Talon mudou de posição na cadeira desdobrável.

    — Sem querer mudar de assunto, mas viste quem a Ártemis mandou para Nova Orleães para ocupar o lugar do Kyrian?

    — Ouvi dizer que foi o Valério — disse Wulf sem poder acreditar. — No que é que a Ártemis estava a pensar?

    — Não faço ideia.

    — O Kyrian sabe? — perguntou Wulf.

    — Por razões óbvias, eu e o Acheron decidimos não lhe contar que o neto e imagem cuspida e escarrada do homem que o crucificou e lhe destruiu a família se ia mudar para a cidade, mesmo para o fundo da rua onde ele mora. Infelizmente, no entanto, estou certo que o descobrirá mais cedo ou mais tarde.

    — Humano ou não, o Kyrian vai matá-lo se os seus caminhos alguma vez se cruzarem; não é algo com que te devesses ter de preocupar nesta altura do ano.

    — A quem o dizes.

    — Então e quem é que ficou de serviço ao Carnaval, este ano? — perguntou Wulf.

    Talon deixou cair a moeda enquanto pensava no antigo escravo greco-romano que se mudaria temporariamente para a cidade, no dia seguinte, para ajudar a combater a explosão de daemon que ocorria todos os anos por aquela altura. Zarek era um conhecido alimentador que ingeria sangue humano. Era no mínimo instável, no máximo psicótico. Ninguém confiava nele.

    E era mesmo uma sorte para Talon ter Zarek ali, em especial tendo em conta que estava à espera da visita de uma Predadora da Noite. Estar na presença de outro Predador da Noite podia drenar-lhes os poderes, mas ele continuava a preferir poder olhar para uma mulher atraente a ter de lidar com a psicose de Zarek.

    Além disso, para o que tinha em mente, ele e a Predadora não precisavam dos seus poderes de Predador da Noite…

    — Vão importar o Zarek.

    Wulf praguejou.

    — Não pensei que o Acheron o voltasse a deixar sair do Alasca.

    — Sim, eu sei, mas foi a própria Ártemis que disse que o queria aqui. Parece que vamos ter um congresso de psicóticos esta semana… Ah, espera, é Carnaval. Dah!

    Wulf voltou a rir.

    Por fim a empregada trouxe o café e um pequeno prato com três beignets carregados de açúcar em pó. Talon suspirou, agradado.

    — Chegou o café? — perguntou Wulf.

    — Oh, sim!

    Talon cheirou o café, pousou-o e estendeu a mão na direção de um beignet. Mal tinha tocado no bolo quando viu algo do outro lado da rua, à direita de Jackson Square, descendo Pedestrian Mall.

    — Ah, meu!

    — O que foi?

    — O raio do alerta Fábio.

    — Hei, tu também não estás muito longe da marca, lourinho.

    — Morde aqui, Viking.

    Irritado com o seu sentido de oportunidade, Talon observou o grupo de quatro daemon caçando na noite. Daemon altos e louros que possuíam a beleza divina da sua raça. Avançavam a passos largos como pavões rufiões, inebriados pelo seu próprio poder, enquanto procuravam turistas para matar.

    Por natureza, os daemon eram cobardes. Só se mantinham firmes e lutavam contra os Predadores da Noite quando estavam em grupo e, mesmo então, apenas em última instância. Por serem muito mais fortes do que os humanos, caçavam abertamente entre eles mas, se um Predador da Noite se aproximasse, fugiam a sete pés.

    Houvera, outrora, um tempo em que não fora assim. Mas as gerações mais jovens eram mais cuidadosas do que os seus antepassados. Não eram tão bem treinadas nem tinham tantos recursos.

    No entanto, eram dez vezes mais emproadas.

    Talon semicerrou os olhos.

    — Sabes, se fosse uma pessoa negativa, estaria bastante zangado, neste momento.

    — A mim, pareces-me zangado.

    — Não, isto não é zangado. Isto é uma ligeira perturbação. Além disso, devias ver estes tipos. — Talon abandonou a sua pronúncia celta enquanto inventava uma conversa entre os daemon. Ergueu a voz até um tom demasiado alto para ser natural. — Hei, George Lindo, acho que sinto o cheiro de um Predador da Noite.

    “Oh, não, Dick” — continuou, baixando a voz dois oitavos —, “não sejas parvo. Não está aqui nenhum Predador da Noite.”

    Talon regressou à sua voz de falsete.

    — Não sei… Espera — disse Talon, usando mais uma vez a voz funda. — Sinto o cheiro de um turista. Um turista com uma alma grande e forte.

    — Importas-te de parar?

    — Verdadeiros borrões de tinta — disse Talon, usando o termo depreciativo que os Predadores da Noite tinham para os daemon. Um termo que tinha a sua origem na estranha marca negra que todos os daemon exibiam no peito, assinalando a sua passagem de simples apollite a assassinos de homens. — Raios, tudo o que eu queria era beber o meu café e comer um simples beignet.

    Talon olhou melancolicamente para a sua bebida enquanto decidia qual deveria ser a prioridade.

    — Café… daemon… café… daemon…

    — Acho que neste caso convém que ganhem os daemon.

    — Sim, mas é café de chicória.

    Wulf estalou a língua.

    — Talon, ansioso por ser desfeito por Acheron, por não ter sido capaz de proteger os humanos.

    — Eu sei — disse ele, com um suspiro enojado. — Deixa-me ir tratar-lhes da saúde. Falamos mais tarde.

    Talon levantou-se, enfiou o telefone no bolso do casaco de motard e olhou cobiçosamente para os seus beignets.

    Oh, os daemon iam pagar por aquilo.

    Dando um gole rápido no café que lhe queimou a língua, esgueirou-se por entre as mesas e abriu caminho atrás dos vampiros que avançavam na direção do edifício do Presbitério.

    Com os sentidos de Predador da Noite alerta, Talon dirigiu-se ao lado oposto da praça. Ia intercetá-los e fazê-los pagar pelos seus hábitos de ladrões de almas.

    E pelos beignets abandonados. »