Dívida de Sangue

Saga do Sangue Fresco nº2

Primeiro Capítulo

 

«    Andy Bellefleur estava bêbado como um cacho. E não era normal. Podem acreditar em mim. Conheço todos os bêbados de BonTemps. Depois de trabalhar durante vários anos no bar de Sam Merlotte, aprendi a conhecê‑los a todos. Mas Andy Bellefleur, filho da cidade e detective no pequeno departamento de polícia local, nunca se embebedara antes no Merlotte’s. Sentia‑me muito curiosa para saber porque seria aquela noite uma excepção.

    Não diria que éramos amigos, nem com muito boa vontade, e, por isso, não lhe poderia perguntar directamente. Mas tinha outros meios ao meu dispor e decidi usá‑los. Apesar de tentar limitar o uso da minha deficiência, dom ou o que preferirem chamar‑lhe, à descoberta de coisas que possam influenciar‑me a mim ou aos meus, por vezes é difícil contrariar a curiosidade pura.

    Baixei as defesas e li a mente de Andy. Arrependi‑me.

    Andy tivera de prender um homem por rapto. Alguém que levara uma vizinha de dez anos para a floresta e a violara. A rapariga estava hospitalizada e o homem estava preso, mas os estragos eram irreparáveis. Senti‑me triste e destroçada. Era um crime demasiado próximo do meu passado. Fiquei a gostar um pouco mais de Andy por estar deprimido.

    — Andy Bellefleur, dá‑me as chaves — disse‑lhe. A sua face larga ergueu‑se para mim, mostrando muito pouca compreensão. Após uma longa pausa, durante a qual a minha intenção permeava o seu cérebro entorpecido, levou a mão ao bolso das calças e passou‑me um porta‑chaves pesado. Servi‑lhe outro uísque com Cola. — Pago eu — expliquei, dirigindo‑me para o telefone ao fundo do bar para ligar a Portia, a sua irmã. Os irmãos Bellefleur viviam numa grande casa branca em decadência que já existia antes da guerra e que, outrora, fora muito vistosa. Situava‑se na rua mais bonita da zona mais aprazível de Bon Temps. Em Magnolia Creek Road, todas as casas se voltavam para o parque atravessado pelo regato coberto aqui e ali por pontes pedonais decorativas. Havia estradas de ambos os lados. Restavam poucas casas antigas, mas todas se encontravam em melhor estado de conservação do que Belle Rive, a casa dos Bellefleur. A manutenção de Belle Rive era demasiado cara para ser suportada por Portia, uma advogada, e por Andy, um polícia, pois as reservas de dinheiro para sustentar tal residência e o terreno circundante há muito haviam desaparecido. Mas a avó, Caroline, recusava teimosamente a venda.

    Portia atendeu ao segundo toque.

    — Portia, fala Sookie Stackhouse — disse, precisando de erguer a voz sobre o ruído ambiente do bar.

    — Suponho que estejas no trabalho.

    — Sim. O Andy está aqui com o grão na asa. Fiquei‑lhe com as chaves. Podes vir buscá‑lo?

    — O Andy bebeu demais? Não é habitual. Claro. Estarei aí dentro de dez minutos — prometeu, desligando.

    — És um doce de rapariga, Sookie — exclamou Andy subitamente.

    Terminara a bebida que lhe servi. Levei o copo e esperei que não pedisse mais.

    — Obrigada, Andy — disse‑lhe. — Tu também não és mau tipo.

    — Onde está… namorado?

    — Aqui mesmo — respondeu uma voz fria e Bill Compton surgiu atrás dele. Sorri‑lhe sobre a cabeça caída de Andy. Bill media cerca de um metro e setenta e cinco, com cabelo e olhos castanho‑escuros. Tinha os ombros largos e braços musculados de um homem que fizera trabalho braçal durante anos. Trabalhara na quinta do seu pai e, depois, na sua, antes de prestar serviço na guerra. Na Guerra Civil, claro.

    — Olá, V.B.! — gritou Micah, o marido de Charlsie Tooten. Bill ergueu casualmente a mão para retribuir o cumprimento e Jason, o meu irmão, disse‑lhe «Boa noite, Vampiro Bill» de forma perfeitamente educada. Jason não acolhera de bom grado Bill no nosso pequeno círculo familiar, mas voltara a página. Eu sustinha a respiração, esperando para ver se a sua atitude melhorada seria permanente.

    — És porreiro para sanguessuga, Bill — disse Andy, com prudência, voltando‑se sobre o banco para o olhar. Reavaliei o seu estado de embriaguez, já que nunca antes se mostrara entusiástico acerca da integração dos vampiros na sociedade americana.

    — Obrigado — tornou Bill, secamente. — E tu não és mau para um Bellefleur. — Inclinou‑se sobre o balcão para me beijar. Os seus lábios eram tão frios como a sua voz. Exigiam alguma habituação. O mesmo se passava quando lhe deitava a cabeça sobre o peito e não ouvia um batimento cardíaco. — Boa noite, querida — disse em voz baixa. Fiz deslizar um copo de B negativo sintético desenvolvido pelos japoneses e ele esvaziou‑o, lambendo os lábios. Pareceu mais rosado quase de imediato.

    — Como correu a reunião, querido? — perguntei‑lhe. Bill passara a maior parte da noite em Shreveport.

    — Conto‑te depois.

    Esperei que a sua história de trabalho fosse menos perturbadora do que a de Andy.

    — Está bem. Podes ajudar a Portia a levar o Andy até ao carro? Aí vem ela — disse, indicando a porta com a cabeça.

    Para variar, Portia não vestia a saia, blusa, meias e saltos baixos que constituíam a sua indumentária de trabalho. Mudara para calças de ganga azuis e para uma velha camisola da Faculdade Sophie Newcomb. A sua compleição era tão sólida como a do irmão, mas tinha cabelo longo e castanho. Mantê‑lo meticulosamente cuidado era o único sinal de que Portia ainda não tinha desistido. Atravessou a clientela ruidosa parecendo determinada.

    — Está encharcado, realmente — disse, avaliando o irmão. Tentava ignorar Bill, que a deixava muito inquieta. — Não acontece com frequência, mas, quando se presta a isso, faz um bom trabalho.

    — Portia, o Bill pode levá‑lo até ao carro — disse. Andy era mais alto do que Portia e mais pesado. Seria claramente um fardo além das capacidades da irmã.

    — Acho que serei capaz — disse‑me, com firmeza, continuando sem olhar para Bill. Vi‑o erguer‑me as sobrancelhas.

    Observei‑a enquanto rodeava o irmão com um braço e tentava içá‑lo do banco. Andy manteve‑se imóvel. Portia olhou em redor, procurando Sam Merlotte, o proprietário, que era pequeno e franzino de aparência, mas muito forte.

    — O Sam está a trabalhar no bar do clube — disse‑lhe. — Deixa o Bill ajudar.

    — Está bem — replicou a advogada, com rigidez, mantendo os olhos na madeira polida do balcão. — Muito obrigada.

    Bill levou segundos a erguer Andy e a levá‑lo até à porta, apesar de as pernas do polícia cederem pelo caminho. Micah Tooten ergueu‑se para abrir a porta e Bill conseguiu levar Andy até ao parque de estacionamento.

    — Obrigada, Sookie — disse Portia. — A conta está paga?

    Acenei afirmativamente.

    — Muito bem — disse, com uma ligeira palmada sobre o balcão para indicar que partia. Teve de ouvir um coro de conselhos bem‑intencionados enquanto seguia Bill pela porta dianteira do Merlotte’s.

    Foi por isso que o velho Buick do detective Andy Bellefleur passou toda a noite e parte do dia seguinte no parque de estacionamento do bar. Andy juraria mais tarde que o Buick estava vazio quando saíra para se dirigir ao bar. E também testemunharia ter‑se sentido de tal forma perturbado que se esquecera de trancar as portas.

    Nalgum ponto entre as oito da noite, quando Andy chegara ao Merlotte’s, e as dez da manhã seguinte, quando cheguei para ajudar a abrir o bar, o carro de Andy adquirira um novo passageiro.

    Um passageiro que provocaria considerável embaraço ao polícia.

    Estava morto.

 

    Eu nem sequer devia ter estado presente. Trabalhara no turno da noite e deveria voltar a trabalhar novamente no mesmo turno na noite seguinte. Mas Bill pediu‑me para trocar com uma colega porque precisava que o acompanhasse a Shreveport e Sam não se opôs. Pedira à minha amiga Arlene para ficar com o meu turno. Tinha um dia de folga, mas não recusava as gorjetas melhores que recebíamos durante a noite e concordou em entrar às cinco da tarde.

    Andy deveria ter vindo buscar o carro nessa manhã, mas a ressaca fora demasiada para convencer Portia a levá‑lo ao Merlotte’s, o que obrigaria a um desvio no caminho para a esquadra. Dissera‑lhe que o iria buscar ao trabalho ao meio‑dia e que almoçariam no bar. Poderia trazer o carro depois disso.

    Assim, o Buick e o seu passageiro silencioso esperaram mais tempo do que deveriam pelo momento da descoberta.

    Dormira cerca de seis horas na noite anterior e sentia‑me muito bem. Namorar com um vampiro pode ser duro para o equilíbrio de uma pessoa diurna como eu. Ajudei a fechar o bar e fui para casa com Bill à uma da manhã. Enfiámo‑nos os dois na sua banheira de hidromassagem e fizemos outras coisas, mas adormeci pouco após as duas e não acordei até serem quase nove. Bill estava debaixo do chão muito antes.

    Bebi muita água e sumo de laranja e tomei um suplemento de vitaminas e ferro ao pequeno‑almoço, o meu regime especial desde que Bill entrara na minha vida e trouxera (juntamente com o amor, a aventura e a emoção) a ameaça constante de anemia. O tempo arrefecia, felizmente, e sentei‑me no alpendre dianteiro de Bill, vestindo um casaco de malha e as calças pretas com que trabalhávamos no Merlotte’s quando estava demasiado frio para calções. O meu pólo branco tinha Merlotte’s Bar bordado sobre o seio esquerdo.

    Enquanto folheava o jornal da manhã, notei com atenção parcial que a relva não crescia ao ritmo habitual. Algumas das folhas pareciam começar a mudar de cor. O ambiente no estádio do liceu talvez fosse tolerável na noite seguinte de sexta‑feira.

    O Verão não abandona com facilidade o Louisiana, mesmo no Norte do estado. O Outono começa de forma pouco convicta, como se pudesse desistir a qualquer momento e deixar regressar o calor abafante de Julho. Mas estava atenta e conseguia notar indícios outonais naquela manhã. O Outono e o Inverno trariam noites mais longas, mais tempo com Bill, mais horas de sono.

    Por isso, sentia‑me alegre quando fui trabalhar. Vendo o Buick sozinho à frente do bar, recordei a surpreendente bebedeira de Andy na noite anterior. Tenho de confessar que sorri ao pensar em como se sentiria na manhã seguinte. Quando me preparava para levar o carro até às traseiras e estacionar junto aos veículos dos outros funcionários, notei que uma das portas traseiras do carro de Andy estava ligeiramente aberta. Isso manter‑lhe‑ia a luz interior ligada? Iria esgotar‑lhe a bateria. Ficaria furioso e teria de entrar para chamar o reboque ou pedir ajuda a outro condutor para fazer o carro pegar… Parei e saí do carro, deixando o motor ligado. Mais tarde, perceberia que fora um erro optimista.

    Empurrei a porta, mas apenas consegui forçá‑la um centímetro. Empurrei‑a com o corpo todo, pensando que se trancaria e que poderia seguir caminho. A porta recusou‑se a fechar. Impaciente, abri‑a para ver o que a bloqueava. Um cheiro nauseabundo saiu do interior. Senti‑me desesperar porque o cheiro não me era desconhecido. Espreitei o banco traseiro do carro, com a mão cobrindo a boca, apesar de isso não conseguir bloquear o odor.

    — Bolas — murmurei. — Merda. — Lafayette, o cozinheiro de um dos turnos do Merlotte’s fora colocado sobre o banco. Estava nu. Fora o pé magro e escuro de Lafayette, com as unhas dos pés pintadas de um escarlate intenso, a impedir a porta de fechar. E era o cadáver de Lafayette que tresandava.

    Recuei, apressada, enfiei‑me no carro e contornei o bar, buzinando. Sam saiu a correr pela porta de serviço, com um avental à volta da cintura. Desliguei o motor e saí tão depressa que nem dei pelo movimento, colando‑me a Sam como uma meia carregada com electricidade estática.

    — O que foi? — disse‑me Sam ao ouvido. Afastei‑me para o olhar, não precisando de erguer muito os olhos porque Sam não era alto. O cabelo alourado reluzia com o brilho do sol. Os seus olhos de um azul intenso arregalavam‑se com apreensão.

    — É o Lafayette — disse, começando a chorar. Era ridículo, idiota e não ajudava nada, mas não consegui impedir‑me de o fazer. — Está morto. No carro do Andy Bellefleur.

    Os braços de Sam apertaram‑me e aproximaram‑me novamente.

    — Sookie, lamento que o tenhas visto — disse. — Vamos chamar a polícia. Pobre Lafayette.

    Ser cozinheiro no Merlotte’s não exige grande talento culinário, pois Sam servia apenas algumas sandes e batatas fritas, e isso permitia grande rotatividade. Mas Lafayette durou mais do que a maioria, para minha surpresa. Era gay. Gay berrante. Gay ao ponto de usar maquilhagem e unhas compridas. As pessoas no Norte do Louisiana são menos tolerantes do que em Nova Orleães e supus que Lafayette, um homem de cor, enfrentara dificuldades a dobrar. Mesmo com as dificuldades (ou talvez devido a elas), fora alegre, malicioso, esperto e um bom cozinheiro. Tinha um molho especial em que embebia os hambúrgueres e os pedidos de Hambúrgueres Lafayette eram muito comuns.

    — Tinha família aqui? — perguntei. Afastámo‑nos com embaraço e entrámos no bar, indo até ao gabinete de Sam.

    — Tinha uma prima — respondeu, enquanto marcava o 911. — Mandem alguém ao Merlotte’s na Hummingbird Road, por favor — disse à telefonista. — Há um homem morto num carro. Sim, no parque de estacionamento à frente do bar. E talvez queiram avisar o Andy Bellefleur. É o carro dele.

    Consegui ouvir o guincho do outro lado da linha do ponto onde me encontrava.

    Danielle Gray e Holly Cleary, as duas empregadas do turno da manhã, entraram pela porta dos fundos, rindo. Eram ambas divorciadas e rondando os vinte e cinco anos. Danielle e Holly eram amigas há muitos anos e pareciam felizes em qualquer emprego que lhes permitisse ficarem juntas. Holly tinha um filho de cinco anos no jardim‑de‑infância e Danielle tinha uma filha de sete anos e um rapaz demasiado pequeno para a escola, que ficava com a avó enquanto a mãe trabalhava no Merlotte’s. Nunca conseguira aproximar‑me grandemente das duas mulheres, mesmo que tivessem quase a minha idade, porque faziam questão de se limitarem ao convívio entre si.

    — Que se passa? — perguntou Danielle quando me viu a cara. A sua face estreita e sardenta tornou‑se imediatamente apreensiva.

    — Porque está o carro do Andy parado à frente do bar? — perguntou Holly. Recordei que saíra durante algum tempo com Andy Bellefleur. Holly tinha cabelo louro curto que lhe emoldurava a face como pétalas murchas de margarida e a pele mais bonita que alguma vez vira. — Passou a noite lá dentro?

    — Não — respondi. — Mas alguém passou.

    — Quem?

    — O Lafayette está lá dentro.

    — O Andy deixou um preto maricas dormir‑lhe no carro? — Era Holly. Ela era a mais directa das duas.

    — Que lhe aconteceu? — Danielle era a mais esperta.

    — Não sabemos — respondeu Sam. — A polícia vem a caminho.

    — Querem dizer — disse Danielle, lentamente e com cautela — que está morto.

    — Sim — confirmei. — É isso mesmo que queremos dizer.

    — Abrimos dentro de uma hora. — As mãos de Holly pousaram‑se sobre as ancas arredondadas. — Que fazemos? Se a polícia nos deixar abrir, quem cozinhará? Os clientes vão querer almoçar.

    — É melhor prepararmo‑nos para essa eventualidade — disse Sam. — Apesar de me parecer que não abriremos até à tarde. — Regressou ao gabinete e começou a ligar a cozinheiros substitutos.

    Era estranho preparar a abertura como se Lafayette estivesse prestes a chegar a qualquer minuto com uma história sobre alguma festa a que teria ido, como fizera poucos dias antes. Ouviram‑se sirenes aproximando‑se pela estrada que passava à frente do Merlotte’s. A gravilha que cobria o parque de estacionamento dianteiro foi esmagada por pneus. Quando acabámos de colocar as cadeiras no chão, de pôr as mesas e de enrolar talheres adicionais em guardanapos para substituir os que fossem usados, a polícia entrou.

    O Merlotte’s ficava fora dos limites da cidade e, por isso, seria Bud Dearborn, o xerife do condado, a tomar conta das operações. Bud Dearborn fora um bom amigo do meu pai e estava grisalho. Tinha uma cara espalmada, como um cão pequinês humano, e olhos castanhos opacos. Vendo‑o entrar pela porta do bar, notei que calçava botas pesadas e trazia o seu boné dos Saints. Devia estar na quinta quando foi contactado. Com ele vinha Alcee Beck, o único detective afro‑americano na polícia do condado. Alcee era tão negro que a sua camisa branca brilhava em contraste com a pele. O nó da gravata era meticuloso e o fato absolutamente correcto. Os sapatos estavam polidos e reluzentes.

    Bud e Alcee geriam o condado entre si… Pelo menos, no que dizia respeito a alguns dos elementos mais importantes que o mantinham funcional. Mike Spencer, agente funerário e médico legista também tinha uma grande influência nos assuntos locais e era bom amigo de Bud. Seria capaz de apostar que Mike estaria já no parque de estacionamento, oficializando a morte do pobre Lafayette.

    — Quem encontrou o corpo? — perguntou o xerife.

    — Fui eu. — Bud e Alcee alteraram ligeiramente a trajectória e dirigiram‑se para mim.

    — Sam, podemos usar o teu gabinete? — perguntou Bud. Sem esperar resposta, inclinou a cabeça para a porta, indicando‑me que devia entrar.

    — Claro. Fica à vontade — respondeu, secamente, o meu patrão.

    — Sookie, estás bem?

    — Estou óptima, Sam. — Não estava muito segura do que dizia, mas Sam não poderia fazer nada sem se meter em sarilhos e não valeria a pena. Apesar de Bud me indicar com um gesto que me sentasse, abanei a cabeça enquanto ele e Alcee se instalavam nas cadeiras do gabinete. Obviamente, Bud ocupou a grande cadeira de Sam enquanto Alcee se contentava com a cadeira adicional, a que tinha ainda algum estofo.

    — Fala‑nos da última vez que viste o Lafayette com vida — pediu Bud.

    Pensei no assunto.

    — Não trabalhou na noite passada — disse‑lhes. — Tivemos cá o Anthony. Anthony Bolivar.

    — Quem é? — Alcee franziu a testa ampla. — Não reconheço o nome.

    — É amigo do Bill. Está de passagem e precisava de trabalho. Tem experiência. — Trabalhou num restaurante durante a Grande Depressão.

    — Estás a dizer‑nos que o Merlotte’s tem um vampiro como cozinheiro?

    — E daí? — repliquei. Senti o esgar casmurro instalar‑se nos lábios e as sobrancelhas aproximando‑se e sabia que a minha expressão se tornava irada. Fazia um esforço para não lhes ler as mentes, tentando manter‑me completamente fora daquele assunto, mas não era fácil. Bud Dearborn era normal, mas Alcee projectava os pensamentos como um farol projecta o seu foco de luz. Naquele momento, irradiava repulsa e medo.

    Nos meses antes de conhecer Bill e perceber que valorizava a minha deficiência (o meu dom, como lhe chamava), esforçara‑me para me convencer a mim e aos outros de que não conseguia «ler» mentes. Mas, desde que Bill me libertara da pequena prisão que construíra para mim própria, praticava e fazia experiências, com o seu encorajamento. Por ele, verbalizara o que sentira durante anos. Algumas pessoas transmitiam uma mensagem clara, como Alcee. A maioria era mais irregular, como Bud Dearborn. Dependia muito da intensidade das suas emoções, da sua clareza de espírito ou, tanto quanto sabia, podia até depender do clima. Algumas pessoas tinham mentes muito pantanosas e era praticamente impossível perceber o que pensavam. Conseguia uma leitura das suas disposições, mas não passava daí.

    Reconhecera que, se tocasse as pessoas enquanto lhes lia os pensamentos, isso tornava a imagem mais clara… como mudar para a televisão por cabo depois de usar uma antena. E descobrira que, se «transmitisse» imagens tranquilizantes a alguém, conseguiria fluir como água através do seu cérebro.

    Poucas coisas me agradariam menos do que fluir pela mente de Alcee Beck. Mas, mesmo que de forma absolutamente involuntária, via um panorama completo da reacção profundamente supersticiosa de

Alcee à descoberta de que havia um vampiro a trabalhar no Merlotte’s, da sua repulsa por perceber que eu era a mulher de que ouvira falar que namorava um vampiro e da sua profunda convicção de que a homossexualidade assumida de Lafayette fora uma vergonha para a comunidade negra. Alcee achava que alguém deveria ter contas a ajustar com Andy Bellefleur para depositar o cadáver de um negro gay no seu carro. Pensava se Lafayette teria SIDA, se o vírus poderia ter‑se infiltrado no banco do carro de Andy, sobrevivendo aí de alguma forma. Se o carro fosse seu, vendê‑lo‑ia.

    Se tivesse tocado em Alcee, teria ficado a conhecer o seu número de telefone e o número do sutiã da mulher.

    Bud Dearborn olhava‑me com estranheza.

    — Disse alguma coisa? — perguntei.

    — Sim. Queria saber se viste o Lafayette aqui durante a noite. Não veio tomar um copo?

    — Não o vi. — Pensando no assunto, nunca vira Lafayette beber um copo. Pela primeira vez, apercebia‑me de que, apesar de a clientela do almoço ser mista, os clientes nocturnos eram quase exclusivamente brancos.

    — Onde ocupava a sua vida social?

    — Não faço ideia. — Todas as histórias de Lafayette eram contadas com nomes alterados para proteger os inocentes. Ou melhor, os culpados.

    — Quando o viste pela última vez?

    — Morto no carro.

    Bud abanou a cabeça, exasperado.

    — Vivo, Sookie.

    — Hmm. Suponho… que terá sido há três dias atrás. Ainda cá estava quando cheguei para o meu turno. Cumprimentámo‑nos. Ah. Falou‑me de uma festa a que tinha ido. — Tentei recordar as palavras exactas. — Disse que tinha estado numa casa onde havia todo o tipo de esquisitice sexual.

    Os dois homens fitaram‑me, boquiabertos.

    — Foi o que disse! Não sei se foi verdade ou não. — Conseguia ver a cara de Lafayette quando me contou aquilo, a discrição com que elevava o dedo aos lábios para indicar que não partilharia nomes nem localizações exactas.

    — Não te pareceu que alguém deveria ser informado a esse respeito? — Bud Dearborn parecia atordoado.

    — Era uma festa particular. Porque deveria contar a alguém?

    Aquele tipo de festa não poderia acontecer naquele condado. Os dois homens olhavam‑me. Bud acabou por dizer, forçando as palavras por entre os lábios comprimidos:

    — O Lafayette disse‑te alguma coisa sobre utilização de drogas nesse convívio?

    — Não. Não me recordo de nada desse tipo.

    — A festa decorreu em casa de alguém branco ou preto?

    — Branco — respondi, desejando ter ficado calada.

    Mas Lafayette mostrara‑se muito impressionado com a casa. Mesmo que não fosse por ser grande ou requintada. Porque teria ficado tão impressionado? Não sabia ao certo o que impressionaria Lafayette, alguém que crescera pobre e que nunca deixara de o ser, mas tinha a certeza de que se referia à casa de alguém branco porque dissera: «As fotografias nas paredes eram todas de gente branca como lírios sorrindo como crocodilos.» Não partilhei este comentário com a polícia e não fizeram mais perguntas.

    Quando saí do gabinete de Sam, depois de explicar porque estava o carro no parque de estacionamento, dirigi‑me para trás do balcão. Não queria ver o movimento no parque de estacionamento e não havia clientes para servir porque a polícia fechara as entradas.

    Sam mudava a arrumação das garrafas atrás do balcão, limpando o pó enquanto o fazia, e Holly e Danielle tinham‑se instalado a uma mesa na secção de fumadores para que Danielle pudesse fumar um cigarro.

    — Que tal foi? — perguntou Sam.

    — Tranquilo. Não gostaram de saber que o Anthony trabalha aqui e não gostaram que referisse a festa de que o Lafayette se gabou no outro dia. Ouviste‑o falar‑me dela? Da orgia?

    — Sim. Também me disse qualquer coisa sobre esse assunto. Deve ter sido uma noite em grande para ele. Se aconteceu realmente.

    — Achas que pode ter inventado tudo?

    — Não me parece que existam muitas festas inter‑raciais e bissexuais em Bon Temps — disse.

    — Apenas porque nunca te convidaram para uma — referi. Pensei se saberia realmente o que se passava na nossa pequena cidade. De todos os habitantes de Bon Temps, deveria ser eu a saber os pormenores porque a informação me estava livremente disponível se pretendesse procurá‑la. — Pelo menos, presumo que seja esse o caso.

    — É esse o caso — disse Sam, esboçando um pequeno sorriso enquanto limpava o pó a uma garrafa de uísque.

    — Penso que o meu convite também se perdeu no correio.

    — Achas que o Lafayette voltou cá na noite passada para falar mais sobre a festa contigo ou comigo?

    Encolhi os ombros.

    — Pode ter combinado encontrar‑se com alguém no parque de estacionamento. Afinal, todos sabem onde fica o Merlotte’s. Recebeu o cheque do ordenado? — Estávamos no fim da semana, quando Sam costumava pagar‑nos.

    — Não. Talvez tenha vindo buscá‑lo, mas ter‑lho‑ia dado no dia seguinte. Hoje.

    — Quem o terá convidado para a tal festa?

    — Boa pergunta.

    — Achas que poderá ter sido estúpido ao ponto de tentar chantagear alguém?

    Sam esfregou a madeira artificial do balcão com um pano limpo. Reluzia já, mas gostava de manter as mãos ocupadas.

    — Não me parece — disse, após pensar no assunto. — Mas convidaram a pessoa errada. Sabes como o Lafayette era indiscreto. Não apenas nos contou que foi a uma festa dessas (e aposto que não deveria fazê‑lo), como poderia querer coisas que deixariam desconfortáveis os outros… participantes.

    — Como manter contacto com pessoas que conheceu na festa? Piscando‑lhes o olho em público?

    — Algo desse género.

    — Parece‑me que, quando se tem sexo com alguém ou quando se vê alguém praticar sexo, nos sentimos à sua altura. — Disse isto com insegurança, tendo experiência limitada nessa área. Mas Sam acenou afirmativamente.

    — O Lafayette queria ser aceite pelo que era acima de qualquer outra coisa — disse. E eu tive de concordar.