Cerimónia Mortal

Primeiro Capítulo

«    A morte rodeava-a. Encarava-a todos os dias, sonhava com ela todas as noites. Vivia sempre com ela. Conhecia os seus sons, os seus aromas, até a sua textura. Podia encará-la nos olhos negros e astutos sem um pestanejar. Ela sabia que a morte era um adversário cheio de truques. Uma hesitação, um pestanejar, e podia mover-se, podia mudar. Podia vencer.

    Dez anos como polícia não a haviam endurecido para essa realidade. Uma década no Corpo não a tinha feito aceitá-la. Quando olhava a morte nos olhos, era com o gélido aço do guerreiro.

    Eve Dallas olhava para a morte agora. E olhava para um dos dela.

    Frank Wojinski tinha sido um bom polícia, de confiança. Alguns teriam dito laborioso. Ela recordava que ele tinha sido afável. Um homem que não se tinha queixado da mixórdia disfarçada de comida no Refeitório da NYPSD, ou a burocracia fatigante para os olhos que o trabalho gerava. Ou — pensava Eve — sobre o facto de ter sessenta e dois anos e nunca ter passado do posto de Sargento Detective.

    Tinha sido um pouco atarracado e tinha deixado o cabelo embranquecer e rarear naturalmente. Em 2058 era raro um homem evitar a escultura corporal e os retoques. Agora, no seu caixão com lateral transparente,
com a sua chuva singela de lírios chorosos, assemelhava-se a um monge de tempos idos a dormir pacificamente.

    Tinha nascido noutros tempos — pensava Eve absorta — tendo vindo ao mundo no final de um milénio e vivido a sua vida no seguinte. Ele tinha passado pelas Guerras Urbanas, mas não tinha falado delas como o
faziam tantos dos polícias mais velhos. Frank não tinha gostado de histórias de guerra — recordou ela. Mais depressa mostrava a última fotografia ou holograma dos filhos e netos.

    Gostava de contar piadas de mau gosto, falar de desporto e tinha uma fraqueza por cachorros-quentes de soja com recheio picante de pickles.

    Um homem de família — pensou ela —, um que deixava para trás um enorme desgosto. De facto, ela não conseguia pensar em ninguém que tivesse conhecido Frank Wojinski e que não tivesse gostado dele.

    Tinha morrido ainda com metade da vida pela frente, morrido sozinho, quando o coração que todos tinham pensado ser tão grande e tão forte tinha pura e simplesmente parado.

    — Raios partam.

    Eve virou-se, colocando uma mão no braço do homem que se chegou para o seu lado.

    — Lamento, Feeney.

    Ele abanou a cabeça, com os seus olhos de camelo esbugalhados repletos de tristeza. Com uma mão ajeitou o seu cabelo ruivo frisado. — Se fosse em acção teria sido mais fácil. Eu podia lidar com o facto de ser no cumprimento do dever. Mas pura e simplesmente parar. Deixar-se ir no cadeirão dele a ver futebol de arena no ecrã. Não está certo, Dallas. Um homem não deve parar de viver com a idade dele.

    — Eu sei. — Sem saber que mais fazer, Eve envolveu um braço sobre o ombro dele e levou-o dali.

    — Ele treinou-me. Cuidou de mim quando eu era novato. Nunca me deixou ficar mal. — A dor irradiava dele e emprestava-lhe um brilho mortiço aos olhos, soçobrando-lhe a voz. — O Frank nunca deixou ninguém ficar mal na vida.

    — Eu sei — disse ela novamente, pois não havia mais nada que pudesse ser dito. Ela estava habituada a que Feeney fosse duro e forte. A delicadeza do desgosto dele preocupava-a.

    Ela guiou-o por entre os enlutados. A sala do velório estava apinhada de polícias e de família. E onde havia polícias e morte, havia café. Ou o que passava por isso em tais locais. Ela serviu uma chávena, passando-lha.

    — Não consigo perceber. Há algo que me escapa. — Ele deixou escapar um enorme suspiro entrecortado. Era um homem robusto e compacto, que usava o seu desgosto tão abertamente quanto usava o casaco amarrotado. — Ainda não falei com a Sally. A minha mulher está com ela. Pura e simplesmente não consigo.

    — Não faz mal. Eu também ainda não falei com ela. — Como não tinha nada com que manter as mãos ocupadas, Eve serviu-se de uma chávena que não fazia intenções de beber. — Estão todos abalados com isto. Eu não sabia que ele tinha um problema cardíaco.

    — Ninguém sabia — disse Feeney calmamente. — Ninguém sabia.

    Ela manteve uma mão no ombro dele enquanto examinou a sala sobrelotada e sobreaquecida. Quando um outro agente morria no cumprimento do dever, os polícias podiam zangar-se, podiam estar concentrados, escolher o seu alvo. Porém, quando a morte se esgueirava e entortava um dedo caprichoso, não havia ninguém para culpar. E ninguém para castigar.

    O que ela sentia na sala e nela própria era impotência. Não se podia apontar a arma, ou o punho, ao destino.

    O agente funerário, todo janota no seu fato preto tradicional e com uma cara tão cerosa como a de alguns dos clientes, andava pela sala a dar pancadinhas de consolo e com os olhos sóbrios. Eve pensou que preferiria que um cadáver se levantasse e lhe sorrisse do que ouvir as suas banalidades.

    — Por que não vamos os dois falar com a família?

    Para ele era difícil, mas Feeney assentiu, pondo de lado o café por beber. — Ele gostava de ti, Dallas. “Aquela miúda tem tomates de aço e uma mente a condizer”, costumava dizer. Ele dizia sempre que se alguma vez estivesse metido numa alhada, era a ti que gostaria de ter cobrir-lhe a retaguarda.

    Isso surpreendeu-a e deixou-a agradada, mas simultaneamente veio aumentar o seu desgosto. — Não me tinha apercebido que ele pensava isso de mim.

    Feeney olhou para ela. Ela tinha uma cara interessante, não daquelas de fazer parar o trânsito, mas das que costumava fazer um homem olhar duas vezes, com os seus ângulos e ossos afilados, a covinha no queixo. Tinha olhos de polícia, intensos e escrutinadores, e ele esquecia muitas vezes que eram de um castanho-dourado escuro. O cabelo dela era do mesmo tom, curto e desesperadamente a pedir algum penteado definido. Era alta e esguia e de constituição forte.

    Ele lembrou-se que tinha sido há menos de um mês que tinha dado com ela, maltratada e ensanguentada. Mas a arma tinha estado firme na mão dela.

    — Ele tinha essa opinião de ti. E eu também. — Enquanto ela pestanejava para ele, Feeney endireitou os seus ombros encurvados. — Vamos falar com a Sally e com os miúdos.

    Esgueiraram-se pela multidão compacta numa sala oprimida pela imitação de madeira escura, cortinados vermelhos pesados e o cheiro funerário de demasiadas flores enfiadas num espaço demasiado pequeno.

    Eve interrogou-se por que motivo os velórios dos mortos eram sempre acompanhados por flores e panos vermelhos estendidos. De que antiga cerimónia teria surgido o costume, e por que motivo a raça humana continuaria a manter-se fiel ao mesmo?

    Ela estava certa de que, quando o seu tempo viesse, não escolheria ser exposta para estudo pelos seus entes queridos e colegas numa sala sobreaquecida onde o aroma persistente das flores fazia lembrar podridão.

    Depois viu a Sally, apoiada pelos filhos e pelos filhos dos filhos, e apercebeu-se de que tais ritos eram para os vivos. Os mortos estavam muito para além de dar importância a essas coisas.

    — Ryan. — Sally estendeu as mãos — mãos pequenas, quase feéricas — e tocou com a face na de Feeney. Manteve-se nessa posição por um momento, os olhos fechados, a cara pálida e sossegada.

    Era uma mulher magra e de fala doce em quem Eve sempre tinha pensado como sendo delicada. Contudo, uma mulher de polícia que tinha sobrevivido ao stress do emprego durante mais de quarenta anos tinha de
ter fibra. Em contraste com o simples vestido preto, tinha posto num fio o anel de 25 anos na NYPSD do marido.

    Outro rito, pensou Eve. Outro símbolo.

    — Estou tão contente por aqui estares — murmurou Sally.

    — Vou sentir a falta dele. Vamos todos sentir a falta dele. — Feeney deu-lhe uma pancadinha desajeitada nas costas antes de se afastar. Tinha o desgosto na garganta, a estrangulá-lo. Engoli-lo só o alojou pesada e friamente nas suas entranhas. — Sabes que se houver alguma coisa…

    — Eu sei. — Os lábios dela curvaram-se ligeiramente, e ela deu um aperto rápido e reconfortante na mão dele antes de se virar para Eve. — Fico agradecida por teres vindo, Dallas.

    — Ele era um bom homem. Um polícia como deve ser.

    — Sim, pois era. — Reconhecendo-o como um grande tributo, Sally conseguiu esboçar um sorriso. — Tinha orgulho em servir e proteger. O Comandante Whitney e a mulher estão cá, e o Chefe Tibble. E tantos outros. — O olhar dela vagueou cegamente pela sala. — Tantos. Ele contava, o Frank contava.

    — Claro que sim, Sally. Feeney ia alternando o peso de pé para pé. — Já, hã, sabe do Fundo de Sobreviventes?

    Ela voltou a sorrir, dando-lhe pancadinhas na mão. — Nós estamos bem. Não te preocupes. Dallas, acho que não conheces a minha família. Tenente Dallas, a minha filha Brenda.

    Baixa, com curvas arredondadas, reparou Eve enquanto apertavam as mãos. Olhos e cabelo escuros, um queixo um tanto ou quanto pronunciado. Saía ao pai.

    — O meu filho, Curtis.

    Esguio, de ossos pequenos, mãos suaves, olhos secos mas toldados pelo desgosto.

    — Os meus netos.

    Eram cinco, o mais novo um rapaz com cerca de oito anos com nariz achatado coberto de sardas. Deitou um olhar inquisidor a Eve. — Porque é que estás armada?

    Corada, Eve apertou o casaco sobre o antebraço. — Vim direitinha da Central de Polícia. Não tive tempo de ir a casa mudar de roupa.

    — Pete. — Curtis lançou a Eve um olhar apologético. — Não incomodes a tenente.

    — Se as pessoas se concentrassem mais nos seus poderes pessoais e espirituais, as armas seriam desnecessárias. Sou a Alice.

    Uma loura esguia vestida de preto deu um passo em frente. Em qualquer caso, ela seria um espanto — pensou Eve absorta — mas tendo origens tão vulgares, era estonteante. Os seus olhos eram de um azul suave e onírico, os lábios cheios e luxuriantes não estavam pintados. Usava o cabelo caído de modo a cair direito e brilhante sobre os ombros do seu vestido preto fluído. Um fio fino de prata caía-lhe até à cintura. Na ponta tinha uma pedra preta encastrada em prata.

    — Alice, és mesmo uma cabeça-de-alho-chocho.

    Ela lançou um olhar frio sobre o ombro na direcção de um rapaz de cerca de dezasseis anos. Mas as mãos dela regressavam sempre à pedra preta, como pássaros elegantes a guardar um ninho.

    — O meu irmão, Jamie — disse ela numa voz sedosa. — Ainda acha que chamar nomes merece uma reacção. O meu avô costumava falar de si, Tenente Dallas.

    — Fico lisonjeada.

    — O seu marido não veio consigo esta noite?

    Eve arqueou uma sobrancelha. Não era apenas desgosto, deduziu ela, mas nervos. Eram fáceis de reconhecer. Também havia sinais, mas não eram claros. A rapariga andava à pesca, ponderou ela. Mas de quê?

    — Não, não veio. — Voltou a direccionar o seu olhar para Sally. — Mandou condolências, Sra. Wojinski. Não está no planeta.

    — Deve requerer imensa concentração e energia — interrompeu Alice — manter um relacionamento com um homem como Roarke enquanto se tem uma carreira exigente, difícil e até perigosa. O meu avô costumava dizer que assim que agarrava uma investigação, já não largava. Diria que tinha razão, Tenente?

    — Se largarmos, perdemos. Eu não gosto de perder. — Ela correspondeu ao estranho olhar de Alice por um momento, depois, impulsivamente, agachou-se e sussurrou a Pete. — Quando eu era novata, vi o teu avô disparar contra um tipo a 9,15 m de distância. Ele era o maior. — Foi recompensada com um esgar rápido antes de se endireitar. — Ele não será esquecido, Sra. Wojinski — disse ela, estendendo a mão. — E ele contava muito para todos nós.

    Ela começou a recuar, mas Alice pousou-lhe uma mão no braço, inclinando-se. A mão, reparou Eve, tremia ligeiramente. — Foi interessante conhecê-la, Tenente. Obrigada por ter vindo.

    Eve inclinou a cabeça e voltou a diluir-se na multidão. Casualmente, colocou a mão no bolso do casaco e sentiu a fina folha de papel que Alice lá tinha colocado.

    Demorou mais trinta minutos para sair dali. Esperou até estar lá fora e no seu carro antes de pegar no bilhete e de o ler.

    Encontre-se comigo amanhã, à meia-noite. Clube Aquário. NÃO CONTE A NINGUÉM. A sua vida está agora em perigo.

    Em vez de assinatura, tinha um símbolo, uma linha negra que corria num círculo em expansão, para formar uma espécie de labirinto. Quase tão intrigada quanto estava aborrecida, Eve enfiou o recado no bolso e seguiu caminho para casa.

    Como era polícia, viu a figura envolta em negro, pouco mais do que uma sombra nas sombras. E como era polícia, sabia que ele a estava a observar.

    Quando Roarke estava fora, Eve preferia fingir que a casa estava vazia. Tanto ela como Summerset, que exercia as funções de chefe de gabinete do Roarke, faziam os possíveis para ignorar a presença um do outro. A casa era enorme, um labirinto de divisões, o que resumia o assunto a evitarem-se mutuamente.

    Ela entrou no átrio amplo, atirou o casaco de cabedal puído sobre o balaústre esculpido, porque sabia que isso faria Summerset cerrar os maxilares. Ele detestava que alguma coisa conspurcasse a elegância da casa.
Especialmente ela.

    Ela subiu as escadas, mas em vez de ir para o quarto principal, desviou-se para o seu escritório.

    Se Roarke tivesse de passar outra noite fora do planeta, como esperado, ela preferia passá-la na sua cadeira de descontracção em vez de na cama.

    Tinha muitas vezes pesadelos quando sonhava sozinha.

    Entre a burocracia atrasada e o velório, não tinha tido tempo para uma refeição. Eve encomendou uma sanduíche — pão de centeio com fiambre da Virgínia verdadeiro — e café que transbordava de cafeína genuína. Quando o AutoChef a entregou, inalou os aromas lentamente, com ganância. Deu a primeira dentada com os olhos fechados para melhor desfrutar do milagre.

    Havia verdadeiras vantagens em estar casada com um homem que podia dar-se ao luxo de comprar carne verdadeira em vez de subprodutos e simulações.

    Para satisfazer a sua curiosidade, dirigiu-se à sua secretária e ligou o computador. Ela engoliu fiambre, rematado com café. — Todos os dados disponíveis sobre o sujeito Alice, apelido desconhecido. Mãe Brenda, de solteira Wojinski, avós maternos, Frank e Sally Wojinski.

A trabalhar…

    Eve tamborilou com os dedos no tampo da mesa, sacou do bilhete e voltou a lê-lo enquanto terminava a refeição rápida.


Sujeito Alice Lingstrom. Data de Nascimento: 10 de Junho de 2040. Primeira e única filha de Jan Lingstrom e Brenda Wojinski, divorciados. Morada, 486 West Eight Street, Apartamento 48, Nova Iorque. Irmão, James Lingstrom. Data de nascimento: 22 de Março de 2042. Educação, 12º ano completo, melhor da turma. Dois semestres de faculdade: Harvard. Major em antropologia. Minor em mitologia. Terceiro semestre adiado. Trabalha actualmente como empregada de balcão na Spirit Quest, 228 West Tenth Street, Nova Iorque. Estado civil, solteira.

    Eve passou a língua pelos dentes. — Registo criminal?

Sem registo criminal.

    — Parece bastante normal — murmurou Eve. — Dados sobre a Spirit Quest.

    Spirit Quest. Loja wicca e centro de consulta propriedade de Isis Paige e Charles Forte. Há três anos na morada da Tenth Street. Rendimento bruto anual de 125 000 dólares. Sacerdotisa acreditada, ervanária e hipnoterapeuta registado disponíveis no local.

    — Wicca? — Eve reclinou-se fungando de desdém. — Bruxaria? Minha nossa. Que tipo de vigarice é esta?

Wicca, reconhecida como religião e arte, é uma fé antiga e baseada na natureza que…

    — Pára. — Eve exalou um suspiro. Não procurava uma definição de bruxaria, mas uma explicação para o facto de um polícia duro como uma pedra acabar com uma neta que acreditava em lançar feitiços e cristais mágicos.

    E o motivo para essa neta querer uma reunião secreta.

    A melhor maneira de descobrir, decidiu ela, era aparecer no Clube Aquário dali a pouco mais do que vinte e quatro horas. Deixou o bilhete na secretária. Seria fácil não lhe ligar, pensou ela, se não tivesse sido escrito por um familiar de um homem que tinha respeitado.

    E se não tivesse visto aquela figura nas sombras. Uma figura que tinha certeza que não queria ter sido vista.

    Entrou na casa de banho adjacente e começou a despir-se. Era uma pena não poder levar Mavis ao encontro. Eve suspeitava que o Clube Aquário seria mesmo ao gosto da amiga. Eve lançou as calças de ganga para o lado, espreguiçando-se para expulsar as maleitas de um longo dia. E perguntou-se o que faria com a longa noite que se aproximava.

    Não tinha nada urgente em que trabalhar. O último homicídio tinha sido tão de caras que ela e a ajudante o tinham encerrado em menos de oito horas. Talvez passasse algumas horas abstraída a olhar para algum ecrã.
Ou podia escolher uma arma na sala de armas de Roarke e descer e fazer correr um programa de holograma para queimar o excesso de energia até conseguir adormecer.

    Nunca tinha experimentado uma das espingardas automáticas dele. Poderia ser interessante experimentar como um polícia abatia um inimigo no início das Guerras Urbanas.

    Ela entrou no duche. — Jactos no máximo, pulsados — ordenou. — Trinta e seis graus.

    Desejou ter um homicídio no qual ferrar os dentes. Algo que lhe concentrasse a mente e lhe esvaziasse o sistema. E, raios, isso era patético. Apercebeu-se de que estava só. Desesperada por uma distracção, e ele só tinha partido há três dias.

    Ambos tinham as suas vidas, não? Tinham-nas vivido antes de se terem conhecido e tinham continuado a vivê-las depois. As exigências de ambas as profissões absorviam muito tempo e atenção. O relacionamento
deles funcionava — e isso continuava a surpreendê-la — porque ambos eram pessoas independentes.

    Minha nossa, ela estava cheia de saudades dele. Enojada consigo própria, enfiou a cabeça debaixo do chuveiro e deixou que a água lhe martelasse o cérebro.

    Quando mãos escorregaram em redor da cintura dela e depois subiram para lhe agarrar os seios, ela mal se alarmou. Mas o coração dela saltou. Conhecia o toque dele, o tacto daqueles dedos longos e esguios, a textura daquelas palmas largas. Inclinou a cabeça para trás, convidando uma boca para a curva do seu ombro.

    — Mmm…Summerset. Seu selvagem.

    Dentes beliscaram-lhe a carne e fizeram-na soltar uma risada. Polegares esfregaram os seus mamilos ensaboados, fazendo-a gemer.

    — Não vou despedi-lo. — Roarke fez percorrer uma mão até ao centro do corpo dela.

    — Valia a pena tentar. Voltaste…— Os dedos dele mergulharam com perícia dentro dela, escorreitos e escorregadios, fazendo-a simultaneamente arquear, gemer e vir-se. — Cedo demais — terminou ela num suspiro explosivo. — Deus meu.

    — Eu diria que foi mesmo a tempo. — Virou-a, e enquanto ela tremia e pestanejava para tirar a água dos olhos, cobriu a boca dela com um longo e sedento beijo.

    Tinha pensado nela no voo interminável para casa. Tinha pensado nisto, apenas nisto: tocar-lhe e saboreá-la e ouvir aquela pequena suspensão na respiração dela, tal como tinha feito. E aqui estava ela, nua e molhada e já a tremer por ele.

    Tomou-a pelos braços no canto, agarrou-a pelas ancas e, lentamente, levantou-a no ar. — Tiveste saudades minhas?

    O coração dela galopava. Estava a centímetros de embater contra ela, de a preencher, de a destruir. — Nem por isso.

    — Bem, nesse caso… — Ele beijou-a ao de leve no queixo. — Vou deixar-te terminar o duche em paz.

    Num rompante, ela envolveu as pernas em redor da sua cintura, segurando com força a crina molhada que era o cabelo dele. — Experimenta, pá, e és um homem morto.

    — Bem, já que é no interesse da auto-sobrevivência. — Para torturar ambos, ele entrou dentro dela lentamente, observando os olhos dela a ficarem opacos. Fechou novamente a boca sobre a dela, fazendo com que os seus curtos fôlegos tremessem por ele.

    A viagem foi lenta e escorregadia, e mais terna do que qualquer um deles tinha esperado. O clímax veio com um longo e sossegado suspiro. Os lábios dela curvaram-se contra os dele. — Bem-vindo a casa.

    Ela podia vê-lo agora, aqueles olhos azuis estonteantes, a cara que tinha tanto de santo quanto de pecador, a boca de um poeta condenado. O cabelo dele pingava água, negro e escorreito, aflorando os ombros largos envoltos num músculo subtil e surpreendentemente forte.

    Olhar para ele depois destas ausências breves e periódicas fazia sempre com que algo inesperado a percorresse. Ela duvidava que alguma vez se habituaria ao facto de que ele não só a queria, como a amava.

    Ela ainda sorria ao passar os dedos pelo seu espesso cabelo negro. — Está tudo bem com o Olympus Resort?

    — Ajustamentos, alguns atrasos. Nada com que não consigamos lidar.

    O resort e centro de prazer elaborado localizado na estação espacial iria abrir dentro do prazo, porque ele não aceitaria nada menos do que isso.

    Ele ordenou que os jactos se desligassem e depois pegou numa toalha para enrolar no corpo dela, quando ela própria teria utilizado o tubo secador. — Começo a compreender porque ficas aqui quando estou fora. Não conseguia dormir na Suite Presidencial. — Ele pegou noutra toalha e esfregou-lhe o cabelo. — Era demasiado solitária sem ti.

    Inclinou-se contra ele por um momento, apenas para sentir as linhas familiares do corpo dele contra o dela. — Estamos a ficar tão melosos.

    — Não me importo. Nós, os irlandeses, somos muito sentimentais. Isso fê-la esboçar um sorriso enquanto ele se virou para ir buscar os robes. Ele podia ter a música da Irlanda na voz, mas ela duvidava seriamente
se quaisquer um dos seus parceiros ou inimigos de negócios considerariam Roarke um homem sentimental.

    — Não tens nódoas negras recentes — observou ele, ajudando-a a vestir o robe antes de ela o poder fazer. — Presumo que isso signifique que tiveste uns dias sossegados.

    — Em grande parte. Houve um tipo que se entusiasmou demais com uma acompanhante registada. Estrangulou-a até à morte durante o sexo. — Ela apertou o robe, passando os dedos pelo cabelo para espalhar mais a água. — Assustou-se e fugiu. Ela moveu os ombros ao entrar no escritório. — Mas arranjou um advogado e entregou-se umas horas mais tarde. O advogado do Ministério Público reduziu a acusação para homicídio involuntário. Deixei a Peabody tratar do interrogatório e da detenção.

    — Hmm… — Roarke foi buscar vinho a um armário embutido, servindo um copo a ambos. — Desde então tem estado calmo.

    — Sim. Esta noite fui àquele velório.

    Ele cerrou as sobrancelhas, descontraindo em seguida. — Ah, pois foi, tinhas-me contado. Desculpa não ter conseguido chegar a casa a tempo de ir contigo.

    — O Feeney está a aceitar a coisa muito mal. Teria sido mais fácil se o Frank tivesse morrido no cumprimento do dever.

    Desta vez, as sobrancelhas de Roarke franziram-se. — Preferirias que o teu colega tivesse sido assassinado em vez de, digamos, ter entrado gentilmente na doce noite?

    — Teria compreendido melhor, só isso. — Ela franziu as sobrancelhas para o copo de vinho. Não pensou que seria sensato dizer a Roarke que ela própria preferiria uma morte rápida e violenta. — No entanto, há algo estranho. Conheci a família do Frank. A neta mais velha é um pouco a dar para o esquisito.

    — Como?

    — A forma como falava e os dados que recolhi sobre ela quando cheguei a casa.

    Intrigado, ele ergueu o copo para beber um gole. — Investigaste os antecedentes dela?

    — Foi só uma investigação rápida. Porque ela me entregou isto. — Eve caminhou até à secretária, pegando no bilhete.

    Roarke examinou-o com cuidado. — Labirinto terrestre.

    — O quê?

    — Este símbolo. É celta.

    Abanando a cabeça, Eve aproximou-se para voltar a olhar. — Tu sabes as coisas mais estranhas.

    — Não é assim tão estranho. Afinal, tenho ascendência celta. O antigo símbolo do labirinto é mágico e sagrado.

    — Bem, isso enquadra-se. Ela anda metida em bruxaria, ou algo assim. Conseguiu iniciar uma educação de primeira. Harvard. Mas desistiu para trabalhar numa loja de West Village que vende cristais e ervas mágicas.

    Roarke percorreu o símbolo com a ponta do dedo. Já o tinha visto, bem como a outros parecidos. Durante a sua infância, os cultos em Dublin tinham sido tudo desde gangues maléficos a pacifistas pios. Todos, como é evidente, tinham utilizado a religião como a desculpa para matar. Ou ser morto.

    — Não tens a mais pequena ideia do motivo para ela se querer encontrar contigo?

    — Nenhuma. Diria que ela pensa que leu a minha aura, ou algo assim. A Mavis era a cabecilha de uma vigarice mística antes de eu a prender por roubar carteiras. Disse-me que as pessoas pagam quase qualquer coisa se lhes dissermos o que querem ouvir. Ainda mais, se lhes dissermos o que não querem ouvir.

    — Por isso é que os vigaristas e os empresários legítimos são muito parecidos. — Ele sorriu para ela. — Presumo que, ainda assim, vais.

    — Claro, vou investigar.

    Evidentemente, fá-lo-ia. Roarke deitou outro olhar ao bilhete e depois pô-lo de lado. — Vou contigo.

    — Ela quer…

    — É uma pena o que ela quer. — Ele bebeu um gole de vinho, um homem habituado a obter exactamente o que queria. De um modo ou de outro. — Não me meto no teu caminho, mas vou. O Clube Aquário é basicamente inofensivo, mas há sempre elementos pouco recomendáveis que escapam ao controlo.

    — Os elementos pouco recomendáveis são a minha vida — disse ela num tom sério, erguendo depois a cabeça. — Tu não és, tipo, dono do Aquarian, pois não?

    — Não. — Sorriu. — Gostavas que fosse?

    Ela riu-se e pegou-lhe na mão. — Anda. Vamos beber isto na cama.

   …

    Descontraída pelo sexo e pelo vinho, adormeceu pacificamente, enrolada em Roarke. Por isso é que ficou surpreendida por acordar subitamente apenas duas horas mais tarde. Não tinha sido um dos seus pesadelos. Não havia terror, dor, frio, suor peganhento.

    No entanto, tinha acordado estremunhada e o coração dela ainda não tinha sossegado. Deixou-se ficar deitada quieta, olhando para a enorme clarabóia por cima da cama, escutando a respiração calma e constante de Roarke a seu lado.

    Mudou de posição, deitou um olhar aos pés da cama e quase lançou um grito quando olhos brilharam no escuro. Depois, registou o peso em cima dos tornozelos. Galahad — pensou ela revirando os olhos. O gato tinha entrado e saltado para cima da cama. Era isso que a tinha acordado — disse para si própria. Era apenas isso.

    Voltou a acomodar-se, virou-se de lado e sentiu o braço de Roarke a envolvê-la no sono. Com um suspiro, fechou os olhos, aninhando-se com familiaridade contra ele.

    Foi apenas o gato — pensou sonolenta.

    Mas poderia ter jurado que tinha ouvido cânticos.»