A Dama Negra
Primeiro Capítulo
« O vento húmido e impertinente gelava os ossos até à medula. A neve de uma tempestade do início da semana empilhara-se em montes irregulares ao longo da beira da estrada. O céu era de um azul amargo. Árvores sombrias com ramos negros e despidos brotavam da erva escurecida pelo Inverno e oscilavam os seus membros como punhos contra o frio.
Assim era Março no Maine.
Miranda pôs o aquecimento no máximo, programou o leitor de CD para La Bohème de Puccini e conduziu com a música em altos berros.
Estava de volta a casa. Depois de dez dias em conferências, saltitando entre hotéis, universidades e o aeroporto, Miranda estava mais do que pronta para regressar a casa.
O alívio que sentia poderia ter algo a ver com o facto de detestar dar palestras e de sofrer imenso sempre que tinha de enfrentar auditórios de rostos ansiosos. Mas a timidez e o medo do palco não podiam interferir com o dever.
Ela era a Dra. Miranda Jones, uma Jones de Cabo Jones. E nunca a deixavam esquecer-se disso.
A cidade tinha sido fundada pelo primeiro Charles Jones a deixar marca no Novo Mundo. Miranda sabia que aos Jones era exigido que deixassem as suas marcas, que mantivessem a sua posição como família mais importante do Cabo, que contribuíssem para a sociedade, que se comportassem como era esperado dos Jones de Cabo Jones, no Maine.
Entusiasmada por se estar a afastar do aeroporto, virou para a estrada litoral e pisou a fundo no acelerador. Conduzir depressa era um dos seus pequenos prazeres. Gostava de se movimentar com rapidez, de ir de um ponto a outro com um mínimo de confusão e de tempo. Uma mulher com quase um metro e oitenta de altura e cabelo da cor de um carro de bombeiros raramente passava despercebida.
E quando se movia com a precisão e o objectivo de um míssil por infravermelhos, o caminho à sua frente ficava geralmente livre.
Tinha uma voz que um homem apaixonado comparara a veludo envolto em papel de lixa. Ela compensava o que considerava ser um acidente do destino cultivando uma elocução rápida e bem articulada que muitas vezes tocava a afectação.
Mas alcançava assim os seus objectivos.
O seu corpo poderia ter resultado de algum antepassado celta, mas o rosto era completamente Nova Inglaterra. Estreito e frio, com um nariz longo e direito, queixo ligeiramente pontiagudo e maçãs-do-rosto salientes. A boca era grande e encontrava-se quase sempre fechada numa linha séria. Os olhos eram de um azul profundo e, na maioria das vezes, discretos.
Mas naquele momento, enquanto se entretinha com o caminho longo e sinuoso que abraçava os rochedos cobertos de neve, tanto a boca como os olhos sorriam. Para lá dos rochedos, o mar estava picado e cinzento. Ela adorava as alterações de humor do mar, o seu poder para acalmar ou fazer vibrar. No preciso momento em que a estrada curvou como um dedo arqueado, ela ouviu o barulho estrondoso da água a bater nas rochas, recuando em seguida como uma mão cerrada para atacar novamente.
A ténue luz do Sol cintilava sobre a neve e o vento espalhava correntes irregulares desta pelo ar e pela estrada. Do lado da baía, as árvores nuas curvavam- se como velhotes, torcidas por anos a fio de tempestades. Quando ainda era criança, e tinha a cabeça cheia de fantasias, imaginara aquelas árvores murmurando lamentos entre si enquanto baloiçavam ao vento.
Embora já não se considerasse imaginativa, ainda adorava o aspecto das árvores, deformadas e nodosas, alinhadas como velhos soldados na falésia. A estrada subia à medida que o terreno estreitava, com a água a galgar de ambos os lados. O mar instável, muitas vezes revolto, beliscava as praias com uma fome infindável. A sinuosa ponta de terra elevava-se, o seu ponto mais alto arqueado como uma articulação artrítica adornado pela antiga casa vitoriana com vista para o mar. Do outro lado, onde o terreno tombava novamente em direcção à água, estava o farol que vigiava a costa.
A casa fora o seu refúgio e alegria enquanto criança por causa da mulher que lá vivera. Amélia Jones contrariara a tradição dos Jones e vivera como quisera, dissera o que pensava e sempre guardara no coração um lugar para os dois netos.
Miranda adorara-a. A única dor que verdadeiramente sentira até então fora a perda de Amélia, que falecera sem aviso, durante o sono, oito anos antes.
A avó deixara a casa, o álbum de fotografias que organizara ao longo dos anos e a colecção de arte a Miranda e ao irmão. Ao filho, pai de Miranda, deixara votos para que ele conseguisse ser metade do homem que ela desejara antes de se encontrarem novamente. À nora, deixara um colar de pérolas porque fora a única coisa que se lembrara ser do agrado de Elizabeth.
Mesmo típico dela, pensava agora Miranda. Aqueles pequenos comentários cheios de significado no testamento. Ela vivera sozinha na grande casa de pedra durante anos e sobrevivera ao marido por mais de uma década.
Miranda estava a pensar na avó quando chegou ao fim da estrada litoral e virou para o longo caminho sinuoso que conduzia à casa.
A casa sobrevivera aos anos e aos temporais, à crueldade do frio do Inverno, ao calor repentino no pino do Verão. Agora, pensava Miranda, com um ligeiro sentimento de culpa, sobrevivia à negligência.
Nem ela nem Andrew pareciam ter tempo para arranjar pintores ou quem tratasse do relvado. A casa que fora em tempos um lugar visitado pela sua beleza exibia agora as suas marcas e cicatrizes. Ainda assim, ela achava-a encantadora, muito como uma mulher mais velha que não receia mostrar a sua idade. Em vez de apresentar uma construção irregular, erguia-se em ângulos corajosos, a sua pedra cinzenta dignificada, os beirais do telhado e torreões notáveis.
Do lado do estreito, uma pérgula conferia charme e extravagância. Glicínias revestiam os lados e cobriam o telhado de flores na Primavera. Miranda fazia sempre tenção de arranjar tempo para se sentar num dos bancos de mármore que se encontravam sob a cobertura perfumada para desfrutar os aromas, a sombra, o sossego. Mas, de alguma forma, a Primavera dava lugar ao Verão, e o Verão ao Outono, e ela nunca se lembrava do seu intento até ao Inverno, quando as espessas trepadeiras já estavam nuas.
Talvez algumas das tábuas da ampla sacada na frente da casa precisassem de substituição. As portadas, de um azul desbotado para cinza, precisavam certamente de ser raspadas e pintadas. As glicínias na pérgula precisavam provavelmente de ser podadas ou regadas ou o que quer que se fizesse com essas coisas.
Ela trataria disso. Mais cedo ou mais tarde.
Mas as janelas brilhavam e as gárgulas agachadas nos beirais sorriam ironicamente. Longos terraços e varandas estreitas ofereciam vistas em todas as direcções. As chaminés lançavam baforadas de fumo – quando alguém se dava ao trabalho de acender uma lareira. Grandes carvalhos antigos erguiam-se a grande altura, e uma densa parede de pinheiros quebrava o vento a norte.
Ela e o irmão partilhavam o espaço de uma forma bastante compatível – ou assim fora até Andrew começar a beber com maior frequência. Mas Miranda não ia pensar nisso. Gostava de o ter por perto, amava-o, e por isso era para si um prazer trabalhar e partilhar a casa com ele.
O vento soprou-lhe o cabelo para dentro dos olhos no exacto momento em que ela saía do carro. Ligeiramente incomodada, puxou-o para trás e depois retirou o portátil e a pasta de dentro do carro. Pôs ambos ao ombro e, assobiando os acordes finais de Puccini, dirigiu-se à bagageira e abriu-a.
O cabelo deslocou-se novamente para diante do rosto fazendo-a bufar de irritação. O meio-suspiro terminou num engasgo quando os cabelos foram subitamente agarrados e usados como corda para lhe puxar a cabeça para trás. Pequenas estrelas brancas explodiram em frente aos seus olhos quando a dor e o choque lhe atingiram o crânio. E ela sentiu a ponta fria e aguçada de uma faca encostada à garganta.
O medo vociferou na sua mente, um grito primitivo que irrompeu no estômago e se dirigiu à garganta. Antes que ela o pudesse libertar, foi virada ao contrário e violentamente atirada contra o carro, e a dor que sentiu na coxa enevoou-lhe a visão e amoleceu-lhe as pernas. A mão que lhe segurava o cabelo sacudiu-a de novo, puxando-lhe violentamente a cabeça para trás como se fosse a de um boneco.
O rosto dele era medonho. De um branco macilento e coberto de cicatrizes, não transmitia qualquer emoção. Ela demorou alguns segundos até o terror lhe permitir perceber que se tratava de uma máscara.
Miranda não lutou, não conseguiu. Não havia nada que ela temesse mais do que uma faca com a sua ponta aguçada e gume mortal. A extremidade cortante pressionada sob o seu queixo fazia com que cada fôlego engasgado viesse acompanhado de dor e medo.
Ele era grande. Cerca de um metro e noventa de altura, reparou ela, tentando prestar atenção aos detalhes enquanto o coração lhe subia até à garganta. Mais de cem quilos, ombros largos, pescoço curto.
Meu Deus!
Olhos castanhos, castanho-escuros. Foi a única coisa que conseguiu ver através das aberturas na apavorante máscara de borracha que ele usava. E eram inexpressivos e frios como os de um tubarão enquanto ele pressionava a ponta da faca e a fazia deslizar sobre o pescoço para lhe cortar delicadamente a pele.
Miranda sentiu um pequeno ardor, e uma fina linha de sangue escorreu para a gola do casaco.
— Por favor. — As palavras saíram num murmúrio enquanto ela tentava instintivamente agarrar no pulso da mão que segurava a faca. Todos os pensamentos racionais deram lugar a um medo frio quando ele usou a ponta aguçada para a fazer levantar a cabeça e expor a linha vulnerável da garganta.
Miranda imaginou a faca a fazer um corte rápido e silencioso na carótida, um jorro de sangue quente. E ela morreria de pé, abatida como um cordeiro.
— Por favor, não faça isso. Tenho trezentos e cinquenta dólares em dinheiro. — Por favor, meu Deus, fazei com que seja dinheiro o que ele quer, pensava ela freneticamente. Que seja apenas dinheiro. Se fosse violação, ela rezava para ter coragem para lutar e tinha esperança que fosse rápido.
— Eu dou-lhe o dinheiro — começou ela, engasgando-se depois com o susto quando ele a atirou para o lado como se de um trapo se tratasse.
Miranda caiu com força sobre as mãos e os joelhos no chão de gravilha e sentiu o ardor de pequeninos cortes nas palmas das mãos. Começou a choramingar e odiou-se pelo medo paralisante que a impossibilitava de fazer mais do que olhar fixamente para ele através de olhos embaciados e para a faca que cintilava sob a ténue luz do Sol.
Enquanto a sua mente gritava para que fugisse, para que lutasse, ela encolhia-se, paralisada.
O homem pegou na mala e na pasta e rodou a lâmina por forma a que o Sol lançasse um raio de luz para dentro dos olhos dela. Depois agachou-se e perfurou o pneu traseiro do carro com a ponta da faca. Quando se levantou e deu um passo na direcção dela, Miranda começou a rastejar em direcção à casa.
Ela esperava que o homem a atacasse outra vez, lhe rasgasse a roupa, lhe enfiasse a faca nas costas com a mesma força desmedida que usara para furar o pneu, mas continuou a rastejar sobre a relva quebradiça.
Quando chegou aos degraus, olhou para trás murmurando sons indistintos.
E viu que estava sozinha.
A sua respiração era ofegante e sentia o ar queimar-lhe os pulmões enquanto se arrastava escada acima. Tinha de entrar, fugir dali. Trancar a porta. Antes que ele voltasse, antes que ele voltasse e a atacasse com a faca.
A mão escorregou-lhe duas vezes da maçaneta antes de ela conseguir segurá-la com firmeza. A porta estava trancada. Claro que estava trancada. Não estava ninguém em casa. Não havia ninguém para a ajudar.
Por um momento, manteve-se simplesmente encolhida, ali, do lado de fora da porta, a tremer devido ao choque e ao vento frio que vergastava a colina.
Mexe-te, ordenou a si mesma. Tens de te mexer. Pega na chave, entra e chama a polícia.
Os seus olhos moviam-se rapidamente para um lado e para o outro, como um coelho à procura de lobos, e os dentes começaram a bater. Apoiando-se na maçaneta, pôs-se de pé. As pernas ameaçavam ceder, o joelho esquerdo latejava de dor, mas Miranda atravessou rapidamente a sacada numa espécie de andar embriagado e procurou freneticamente pela mala antes de se lembrar que o homem a levara.
Balbuciou palavras, orações, maldições e súplicas enquanto abria a porta do carro e remexia desajeitadamente no porta-luvas. Quando conseguiu agarrar nas chaves de reserva, ouviu um som que a fez virar-se subitamente e erguer os braços num gesto defensivo.
Não havia nada exceptuando o vento que circulava por entre os ramos negros e desnudados das árvores, através dos caules espinhosos das rosas trepadeiras e sobre a relva quebradiça.
Com uma respiração sibilante, avançou rapidamente para casa a coxear, enfiou atrapalhadamente a chave na fechadura e suspirou de alívio quando esta fez abrir a porta.
Entrou em casa aos tropeções, bateu com a porta e trancou-a. Quando se encostou à madeira sólida, as chaves deslizaram-lhe dos dedos e aterraram no chão com um ruído musical. A sua visão enturvou e ela fechou os olhos. Tudo lhe parecia dormente: mente e corpo. Precisava de dar o passo seguinte, de agir, de fazer frente à situação, mas não conseguia lembrar-se do passo a tomar.
Tinha os ouvidos a zunir e sentiu uma forte náusea. Cerrando os dentes, deu um passo em frente e depois outro, enquanto o hall de entrada parecia inclinar-se suavemente para a direita e para a esquerda.
Estava quase a chegar à escada quando percebeu que não eram os ouvidos que estavam a zunir, mas o telefone. Mecanicamente, dirigiu-se, confusa, até à sala de estar, onde tudo era tão normal, tão familiar, e atendeu o telefone.
— Estou? — A sua voz parecia longínqua, cavernosa como uma pancada solitária num tambor de madeira. Oscilando um pouco, olhou para o padrão produzido pelos raios de Sol que entravam pelas janelas e iluminavam as grandes tábuas do soalho de pinho. — Sim. Sim, compreendo. Estarei aí. Tenho… — O quê? Abanando a cabeça para clarear a mente, Miranda tentou esforçadamente lembrar-se do que precisava de dizer. — Tenho algumas coisas… tenho que tratar de algumas coisas primeiro. Não, partirei assim que puder.
Depois sentiu algo efervescer dentro de si mas estava demasiado atordoada para perceber tratar-se de histeria. — Já tenho as malas feitas — disse. E começou a rir.
Ainda estava a rir quando desligou o telefone. A rir quando se deixou cair numa cadeira. E, enquanto se enrolava numa pequena esfera defensiva, não se apercebeu que o riso dera lugar a soluços.
...
Tinha as mãos em volta de uma chávena de chá quente, mas não o bebia. Ela sabia que a chávena iria tremer, mas era um conforto segurá-la, sentir o calor passar do recipiente para os dedos gelados e aliviar a pele esfolada das palmas das mãos.
Miranda fora coerente – era imperativo ser-se coerente, claro, preciso e sereno quando se relatava um crime à polícia.
Assim que conseguira raciocinar novamente, fizera os telefonemas adequados, falara com os agentes que se haviam deslocado a sua casa. Mas agora que estava feito, e se encontrava sozinha outra vez, parecia não conseguir reter um único pensamento consistente por mais de dez segundos.
— Miranda! — O grito foi seguido pelo estrondo da porta da frente a fechar. Andrew entrou esbaforido e examinou horrorizado o rosto da irmã. — Jesus! — Correu ao seu encontro, agachou-se aos pés dela e começou a deslizar os longos dedos pelas suas faces pálidas. — Oh, querida…
— Estou bem. São só algumas nódoas negras. — Mas o controlo que ela conseguira reedificar estremeceu. — Fiquei mais assustada do que magoada.
Andrew viu as lágrimas nas pernas das calças dela, o sangue seco na camisola de lã. — O filho da mãe! — Os seus olhos, de um azul mais sereno do que os da irmã, escureceram subitamente de horror. — Ele…? — As suas mãos cobriram as dela e seguraram ambos na chávena de porcelana. — Ele violou-te?
— Não. Não. Não aconteceu nada disso. Roubou-me apenas a mala. Ele só queria dinheiro. Desculpa por ter pedido à polícia para te ligar. Devia tê-lo feito eu mesma.
— Não tem importância. Não te preocupes. — Apertou as mãos dela com mais força e depois libertou-as rapidamente quando ela se retraiu. — Oh, querida. — Tirou-lhe a chávena das mãos, pousou-a de lado e voltou- lhe as palmas das mãos para cima. — Desculpa. Anda, vou levar-te ao hospital.
— Não preciso de ir ao hospital. São só nódoas negras e esfoladelas. — Miranda inspirou profundamente, percebendo que era mais fácil fazê-lo agora que ele estava ao pé dela.
Ele conseguia enfurecê-la, e já a tinha desiludido. Mas durante toda a vida, o irmão fora a única pessoa que nunca a abandonara, que sempre a apoiara.
Andrew pegou na chávena de chá e entregou-a de novo à irmã. — Bebe um pouquinho — ordenou, antes de se levantar e começar a andar de um lado para o outro.
Ele tinha um rosto fino, e bastante ossudo, que ficava bem com a estatura longa e magra. Tinha as mesmas cores da irmã, embora o cabelo fosse de um ruivo mais escuro, castanho-avermelhado. Os nervos faziam-no bater com os dedos na coxa enquanto andava.
— Quem me dera ter estado aqui. Raios, Miranda! Eu devia ter estado aqui.
— Não podes estar em toda a parte, Andrew. Ninguém podia adivinhar que eu seria assaltada à porta de casa. Eu acho, e a polícia também, que ele ia provavelmente assaltar a casa e que a minha chegada o surpreendeu e lhe alterou os planos.
— Disseram-me que ele tinha uma faca.
— Sim. — Miranda levou cuidadosamente uma mão ao corte superficial que tinha na garganta. — E eu posso dizer que não ultrapassei a minha fobia de facas. Bastou um olhar e a minha mente ficou imediatamente paralisada.
O olhar de Andrew ficou pesado, mas ele falou delicadamente quando se sentou ao lado da irmã. — O que é que ele fez? Podes contar-me?
— Ele surgiu do nada. Eu estava a tirar as minhas coisas da bagageira. Ele puxou-me os cabelos e encostou a faca ao meu pescoço. Pensei que me ia matar, mas atirou-me ao chão, pegou na minha mala, na pasta, cortou os pneus do carro e foi-se embora. — Miranda conseguiu fazer um sorriso
trémulo. — Não foi exactamente o regresso a casa que eu esperava.
— Eu devia ter estado aqui — disse ele outra vez.
— Pára, Andrew. — Miranda encostou-se ao irmão e fechou os olhos. — Estás aqui agora. — E parecia que isso era suficiente para a acalmar. — A mãe telefonou.
— O quê? — Andrew inclinou-se para a frente para olhar para a cara dela.
— O telefone estava a tocar quando entrei em casa. Meu Deus, ainda tenho a cabeça baralhada — queixou-se ela, esfregando a têmpora. — Amanhã tenho de ir para Florença.
— Não sejas ridícula. Acabaste de chegar a casa e estás magoada, estás abalada. Meu Deus, como é que ela te pode pedir que entres num avião depois de teres sido atacada?
— Não lhe contei. — Encolheu os ombros. — Não estava a raciocinar. De qualquer forma, a ordem foi clara. Tenho de reservar uma passagem.
— Miranda, tu vais é deitar-te.
— Oh, claro. — Sorriu novamente. — Já não falta muito.
— Eu telefono-lhe. — Andrew susteve a respiração como alguém que se depara com uma tarefa complicada. — Eu explico-lhe.
— Meu herói. — Miranda deu um beijo na bochecha do irmão. — Não, eu vou. Um banho quente, uma aspirina, e fico boa. E depois desta pequena aventura, fazia-me bem uma distracção. Parece que ela
tem um bronze que quer que eu analise. — Como o chá já tinha esfriado, ela pousou novamente a chávena. — Ela não me chamaria à Standjo se não fosse importante. Quer um especialista em arqueometria e com urgência.
— Ela tem arqueólogos na Standjo.
— Exactamente. — Desta vez o sorriso de Miranda foi fino e luminoso. «Standjo» significava Standford-Jones. Elizabeth garantira que não só o seu nome mas tudo o que constava da sua agenda fosse prioritário na operação de Florença. — Por isso, se ela precisa de mim, é porque se trata de algo muito importante. Ela quer que o assunto fique em família. Elizabeth Standford-Jones, directora da Standjo, em Florença, precisa de um perito em bronzes do período renascentista italiano, e quer um com o nome Jones. Não tenciono desiludi-la.
...
Miranda não conseguiu passagem para a manhã seguinte e teve de se contentar com um lugar no voo da noite para Roma com um transbordo para Florença.
Quase um dia inteiro de atraso.
Teria de enfrentar o inferno.
Enquanto tentava aliviar as dores numa banheira de água quente, calculou a diferença horária e decidiu que não valia a pena telefonar à mãe. Elizabeth estaria em casa e, muito provavelmente, já a dormir.
Não posso fazer mais nada esta noite, pensou. De manhã ligaria para a Standjo. Um dia não faria assim tanta diferença, mesmo a Elizabeth.
Chamaria um táxi para a levar ao aeroporto, porque, da forma como o joelho latejava, conduzir seria problemático mesmo se conseguisse substituir rapidamente os pneus do seu carro. Ela só tinha que…
Sentou-se direita na banheira, fazendo transbordar alguma água.
O passaporte. O passaporte, a carta de condução, os cartões de identificação da companhia. O assaltante levara a pasta e a mala; levara todos os seus documentos de identificação.
— Droga — disse, enquanto esfregava as mãos sobre o rosto. Isso tornava tudo ainda melhor.
Destapou o ralo da antiga banheira com pés. Sentiu-se enfurecer, e a explosão de raiva fê-la levantar-se e pegar numa toalha antes que o joelho afectado cedesse. Contendo um grito, apoiou uma mão na parede e sentou-se na borda da banheira deixando cair a toalha dentro de água.
As lágrimas queriam brotar, de frustração, de dor, do medo repentino que a atingia novamente. Sentou-se despida e a tremer, com a respiração agitada e presa em pequenos fôlegos até os conseguir controlar.
Lágrimas não a ajudariam a recuperar os documentos, a aliviar as dores ou a chegar a Florença. Engoliu-as e espremeu a toalha. Com muito cuidado, tirou as pernas de dentro da banheira com a ajuda das mãos, uma de
cada vez. Pôs os pés no chão, com suor a escorrer-lhe da pele, e os olhos encheram-se novamente de lágrimas. Mas levantou-se, apoiando-se no lavatório, e examinou-se no espelho de corpo inteiro que estava atrás da porta.
Tinha nódoas negras nos braços. Não se lembrava de ele a ter agarrado ali, mas as marcas eram de um cinza escuro, por isso, logicamente, ele agarrara. A anca estava azul e negra e extremamente dorida. Aquele, recordou ela, era o resultado de ter sido atirada contra o carro.
Os joelhos estavam esfolados e em carne viva; o esquerdo, vermelho e inchado. Devia ter caído mais sobre aquele e tê-lo torcido. As palmas das mãos ardiam devido ao atrito com a gravilha do caminho.
Mas foi o golpe longo e superficial na garganta que lhe pôs a cabeça a andar à roda e lhe provocou mais uma náusea. Fascinada e horrorizada, levou os dedos ao pescoço. A poucos milímetros da jugular, pensou. A poucos milímetros da morte.
Se ele tivesse querido matá-la, ela teria morrido.
E isso era pior do que as feridas e as dores latejantes. Um estranho tivera a sua vida nas mãos.
— Nunca mais. — Afastou-se do espelho e pegou no robe que estava pendurado na porta. — Nunca mais deixarei uma coisa destas acontecer.
Estava a gelar e embrulhou-se o mais rapidamente possível no robe. Quando tentava dar um nó no cinto, um movimento do lado de fora da janela fê-la levantar subitamente a cabeça e o coração acelerar.
Ele tinha voltado.
Ela queria fugir, esconder-se, gritar por Andrew, encolher-se atrás de uma porta trancada. E, de dentes cerrados, aproximou-se da janela e espreitou lá para fora.
Era Andrew, observou com uma estonteante sensação de alívio. Estava com o casaco xadrez de lenhador que usava para cortar lenha ou trepar as escarpas. Ele ligara os projectores e ela conseguia ver alguma coisa a brilhar-lhe na mão, algo que ele baloiçava enquanto caminhava a passos largos pelo pátio.
Intrigada, encostou o rosto à janela.
Um taco de golfe? Que raio fazia ele lá fora a marchar pelo relvado coberto de neve com um taco de golfe na mão?
Então percebeu, e sentiu-se inundar de um amor que a aliviou mais do que um analgésico.
Estava a protegê-la. As lágrimas regressaram. Uma saltou. Então ela viu-o parar e retirar algo do bolso.
E viu-o tomar um grande gole de uma garrafa.
Oh, Andrew, pensou, fechando os olhos com a desilusão. Que mal estamos.
...
Foi a dor que a acordou, uma dor aguda e latejante que emanava do joelho. Miranda ligou atrapalhadamente a luz e entornou os comprimidos do frasco que colocara em cima da mesa-de-cabeceira. Enquanto os engolia, percebeu que deveria ter seguido o conselho de Andrew e ter ido ao hospital, onde algum médico simpático lhe teria prescrito algumas drogas boas e potentes.
Deu uma olhadela ao mostrador luminoso do seu relógio e viu que já passava das três. Pelo menos a mistura de ibuprofeno e aspirina que tomara à meia-noite dera-lhe três horas de alívio. Mas já estava acordada, à caça da dor. Decidiu que o melhor era acabar com esta de uma vez por todas e aguentar com as consequências.
Com a diferença horária, Elizabeth deveria estar no escritório. Miranda pegou no telefone e ligou à mãe. Gemendo um pouco, apoiou as almofadas na cabeceira de ferro forjado e encostou-se nelas.
— Miranda, eu estava prestes a ligar para deixar uma mensagem no teu hotel para quando chegasses amanhã.
— Vou chegar atrasada. Vou…
— Atrasada? — A palavra foi como uma lasca de gelo, fria e cortante.
— Desculpa.
— Pensei que tinha deixado claro que este projecto é uma prioridade. Garanti ao governo que iniciaríamos os testes hoje.
— Vou mandar o John Carter. Eu…
— Não mandei chamar o John Carter, mas sim a ti. Qualquer outro trabalho que tenhas pode ser delegado. Acho que também deixei isso bem claro.
— Sim, deixaste. — Não, pensou ela. Desta vez os comprimidos não iriam ajudar. Mas a raiva que começava a formar-se dentro dela iria certamente deixar para trás uma pequena dor. — Eu tencionava estar aí, como me mandaste.
— Então porque é que não estás?
— O meu passaporte e os outros documentos de identificação foram roubados ontem. Vou tratar de os substituir o mais rapidamente possível e marcar outro voo. Como hoje é sexta-feira, duvido que consiga ter novos documentos antes de meados da próxima semana.
Ela sabia como funcionavam as burocracias, pensou Miranda. Fora criada dentro de uma.
— Mesmo num lugar relativamente calmo como Cabo Jones, é um descuido tolo não trancar o carro.
— Os documentos não estavam no meu carro, estavam comigo. Conto-te tudo assim que forem substituídos e eu tiver marcado outro voo. Peço desculpa pelo atraso. O projecto terá toda a minha atenção assim que eu chegar. Adeus, mãe.
Deu-lhe um gosto perverso desligar antes de Elizabeth conseguir dizer mais alguma coisa.
...
No escritório elegante e espaçoso a cinco mil quilómetros de distância, Elizabeth olhava para o telefone com um misto de irritação e confusão.
— Algum problema?
Distraída, Elizabeth olhou para a sua antiga nora. Elise Warfield estava sentada, com um bloco de notas apoiado no joelho, os enormes olhos verdes perplexos, a boca suave e sensual ligeiramente curvada num sorriso atento.
O casamento entre Elise e Andrew não tinha funcionado, o que fora uma decepção para Elizabeth. Mas a sua relação profissional e pessoal com Elise não ficara prejudicada com o divórcio.
— Sim. A Miranda está atrasada.
— Atrasada? — Elise ergueu as sobrancelhas e estas desapareceram por debaixo da franja que tocava levemente a testa. — Isso não parece coisa da Miranda.
— Roubaram-lhe o passaporte e os outros documentos de identificação.
— Oh, isso é terrível. — Elise levantou-se. Tinha cerca de um metro e sessenta de altura e um corpo com curvas exuberantes e femininas que conseguiam parecer delicadas. Com o seu gorro liso de cabelo preto, os olhos grandes e pestanudos, pele branca e o vermelho profundo da boca, parecia uma fada eficiente e sexy. — Ela foi assaltada?
— Não sei pormenores. — Os lábios de Elizabeth cerraram-se por instantes numa linha estreita. — Ela vai tratar de os substituir e de marcar nova viagem. Pode levar alguns dias.
Elise ia começar a perguntar se Miranda tinha sido ferida, mas fechou a boca. Pelo olhar de Elizabeth, ou ela não sabia ou não era essa a sua preocupação principal. — Sei que quer começar hoje com os testes. Isso pode certamente ser conseguido. Posso trocar algum do meu trabalho e iniciá-los eu mesma.
Reflectindo, Elizabeth levantou-se e voltou-se para a janela. Conseguia sempre pensar mais claramente quando observava a vista sobre a cidade. Florença era a sua casa, tinha sido a sua casa desde a primeira vez que a vira. Tinha nessa altura dezoito anos, era uma estudante universitária com um amor desesperado por arte e uma sede secreta por aventura.
Apaixonara-se perdidamente pela cidade, pelos seus telhados vermelhos e cúpulas majestosas, ruas sinuosas e praças movimentadas.
E apaixonara-se por um jovem escultor que a atraíra de um modo encantador para a cama, lhe dera massas e lhe mostrara o seu próprio coração.
Claro que não era o homem adequado para si. Pobre e loucamente arrebatado. Os pais tinham-na enviado de volta para Boston assim que haviam tido conhecimento da relação.
E isso, obviamente, ditara o fim da mesma.
Elizabeth estremeceu, irritada por o seu pensamento ter divagado naquela direcção. Ela fizera as suas escolhas e tinham sido escolhas excelentes.
Agora era directora de uma das maiores e mais respeitadas companhias de investigação de arte no mundo. A Standjo podia ser um dos braços da organização Jones, mas era dela. O seu nome vinha em primeiro lugar, e também ela.
Ali estava emoldurada pela janela, uma mulher de cinquenta e oito anos, atraente e em plena forma. O seu cabelo era de um tom louro pálido discretamente tingido por um dos melhores cabeleireiros de Florença. O seu excelente gosto reflectia-se no fato Valentino de corte impecável, cor de beringela com botões dourados que usava. As sabrinas de cabedal eram exactamente do mesmo tom.
A sua compleição era clara, com uma boa estrutura óssea tipo Nova Inglaterra que sobressaía sobre as poucas rugas que se atreviam a aparecer. Os olhos eram de um azul intenso e impiedosamente inteligentes. A imagem era a de uma mulher fria, moderna e profissional, de fortuna e alta posição social.
Ela nunca se teria contentado com menos.
Não, pensou, nunca se teria contentado com menos do que o melhor.
— Vamos esperar por ela — disse. E voltou-se de costas para Elise. — É a área dela, a sua especialidade. Contactarei pessoalmente o ministro e explicarei o curto atraso.
Elise sorriu. — Ninguém compreende os atrasos como os italianos.
— É verdade. Veremos esses relatórios mais tarde, Elise. Agora quero fazer este telefonema.
— A senhora é que manda.
— Pois é. Oh, o John Carter chega amanhã. Vai trabalhar na equipa da Miranda. Estás à vontade para lhe atribuir outro projecto enquanto ela não chega. Não faz sentido ele ficar de braços cruzados.
— O John vem? Será bom revê-lo. Pode fazer-nos jeito no laboratório. Vou tratar disso.
— Obrigada, Elise.
Já sozinha, Elizabeth sentou-se novamente à secretária e examinou o cofre do outro lado do gabinete. Concentrou-se no que se encontrava lá dentro.
Miranda lideraria o projecto. Tomara essa decisão assim que vira a figura de bronze. Seria uma operação Standjo, com um Jones no comando. Fora isso que planeara, e era o que esperava.
E seria isso que aconteceria.